Quarta, 19.
Ontem fui ao encontro do João e do Zé à Bertrand. Ao fundo da livraria, no pequeno café descomplexado, estivemos para cima de uma hora a discutir o quê? Isso mesmo. Não há forma nem jeito de me entender com o João, estando eu nos antípodas dos seus mundos ternos, unidos ao proletariado querido, protegido pelas teorias marxistas-leninistas do trabalho e da condição de felicidade estabelecida nos manuais que ele hauriu até ao tutano. Ainda que aquela filosofia esteja ultrapassada pela evolução social e não seja possível prescrevê-la como impunha o século XIX, e posteriormente destruída pela autoridade soberana de ditadores desumanos e superpotentes, para quem a nomenclatura disciplinava e subjugava como qualquer outra escravatura, não obstante essa constatação hoje admitida e rejeitada, João prossegue a sua reza que já ninguém tem pachorra para ouvir. Personagem sui generis este meu amigo. Ao fim de uma vida, ainda não entendeu que a História desdobra-se em histórias onde cada historiador acrescenta um parágrafo, um capítulo da sua imaginação e bafagem ideológica. Dali fomos almoçar ao Príncipe onde não entrava seguramente há mais de cinco anos. Lá encontrámos o Carlos Soares, o Alexandre e o Paulo Santos senhor absoluto desta reunião.
- Descemos o Chiado e fomos direitos à Câmara Municipal e mais adiante ao Ministério da Marinha para assistirmos à conferência do catedrático Paulo Santos sobre João Pedroso o pintor do século XIX que ao mar dedicou a vida. Muito interessante, sala cheia de personalidades – majores, almirantes, cadetes, coronéis, gente da cultura e amigos – que o escutaram com interesse e estima, ele que não fez carreira na Armada. A palestra foi bem articulada, cronologicamente rica, ilustrada com telas do mestre, algumas, sobretudo a partir de 1870, de um modernismo, sensibilidade e beleza impressionantes. Aquela palestra, antecede a publicação do livro que o ensaísta quer dedicar ao pintor romântico e eu vi e li passagens trazendo com a sua aturada pesquisa novas formas de conhecimentos da obra e da vida do Mestre.
- Tarde, com a noite já colada à cidade, sob o comando do João que tendo nascido lá para o Norte, conhece melhor os recantos, becos e vielas que o lisboeta de gema que eu sou. Ou que fora. Porque ao tergiversar até ao metro, a quantidade de restaurantes àquela hora atulhados de turistas, o movimento intenso da Baixa, eclipsava a minha memória traduzida num espanto, num desgosto sem mágoa, num olhar fugitivo pelas fachadas dos velhos e perduráveis prédios, embasbacado com a fauna barulhenta, pelintra, que por ali se quedava noite dentro. O frio e uma certa humidade, caía sobre a cidade multifacetada, sem pátria, sem legítimos proprietários, suspensa do rumor que intriga, absorve, faz medo e perde a identidade que sempre fora a minha, que sempre fora a sua. Quando meti a chave à porta, rejubilei – a minha cidade está inteira dentro destes muros que me abrigam e protegem - Lisboa escondeu-se aqui.
- Telefonaram-me da Livraria Francesa a dizer que Monsieur Green tinha chegado, irei ao seu encontro amanhã.