quinta-feira, março 07, 2024

Quinta, 7.

Os dias, melhor dizendo., as horas mais felizes para mim são as que consagro à escrita. Estar ali diante da página em branco, o cérebro mergulhado na expectativa da palavra que se soma à anterior, e depois a seguinte, uma a uma varrendo a linha de um lado ao outro, sem tempo, ou antes suspenso do tempo da escrita povoado de vozes e presenças e hesitações e congeminações, na espera que a personagem me solicite o encadeamento da cena, do diálogo, do confronto, tudo no profundo respeito pela intimidade de cada uma, honrando cadências, revelações, o zuir do coração... 

         - Não sei como vou terminar os meus dias. O que vejo e ouço, coloca-me numa situação de conforto, pois aqueles amigos que me confidenciam que na senectus não contam com os filhos, como a Glória outro dia, referindo o projecto dela e Raul, de vender a grande casa com piscina e vasto jardim, para adquirirem um pequeno apartamento em Setúbal, onde possam terminar a vida sem muitos incómodos nem esperança de os dois filhos lhes acudirem. Pelo menos esta que julgo ser a tremenda desilusão no final da vida, não a terei eu.  

         - Outro dia, tendo jantado na Expo em casa de amigos, tomei o metro na gare do Oriente. Está ali, no fundo da terra, a imagem do Portugal democrático tal como não no-lo mostram os políticos sem honra nem vergonha que nos governam. De ambos os lados, encostados às paredes, nos bancos de cimento que correm os muros de um lado e outro, no chão e sobre bancos corridos, uma imensa camarata onde repousa talvez meia centena de pessoas, depois de um dia decerto arrasante de trabalho. São os enganados do país simpático, que recebe bem toda a gente, que os de esquerda acolhem por convicções ideológicas idiotas e depois os abandonam à sua sorte. Senti vergonha, asco, pelo meu país e misericórdia por aquela multidão de infelizes cobertos com mantas, cobrindo a cabeça, de todas as cores e etnias, sob o olhar da esquadra de polícia que ali se encontra.   

         - Quarta-feira da semana passada, tive um serão magnífico. A antena 2 francesa, apresentou um programa, conduzido pelo excelente apresentador Laurent Delahousse, Un jour, un destin, dedicado ao homem que acabou com a pena de morte em França, o judeu Robert Badinter. Que vida! Que vida iluminada, cheia e plena de sabedoria! Intelectual, professor, advogado e por fim ministro da Justiça, Presidente do Conselho Institucional no tempo de François Mitterrand de quem era íntimo amigo. Depois de ter defendido vários indivíduos acusados de terem matado outros seres humanos, requerendo o Habeas Corpus ao Presidente antes do socialista para um; outro foi mesmo decapitado (era esta a técnica empregada), foi crescendo nele a ideia da inutilidade de roubar a vida a quem cometeu crimes sentenciados com a pena capital – a prova é que os crimes não deixaram de acontecer. O povo francês estava unanimemente contra a abolição da pena de morte, mas com a cumplicidade de Mitterrand já Presidente, ele vai defender a sua lei no Senado. Fá-lo com tal vigor, com violência até, que a lei que ele próprio redigira acabou por passar e a França, em 1981, um século depois de nós, extingue uma crueldade que ninguém tem direito de praticar. Klaus Barbie é apanhado e condenado em França pelas suas atrocidades cometidas em Lyon, em 1983. Um dos homens que se pensa que ele torturou até à morte, foi o pai e Robert Badinter. O jurista e escritor ante o julgamento do “carniceiro de Lyon” não lamentou a sua luta. Como escritor, publicou várias obras ligadas à Justiça e um pequeno livro, verdadeira joia, onde conta a história da sua família e a chegada dos pais e avó à França no princípio do século XX vindos da então URSS.   

         - Fui à natação. Acreditem – depois de ter saído um rapaz em aulas com a professora, fiquei completamente só num vasto tanque de 25 metros. Só quando pelas 13 horas deixei o pequeno oceano, começaram a entrar alguns desportistas. Percebe-se, em tempo de chuvas torrenciais e ventos fortes, os atletas de etiqueta não arriscam sair.  

         - Partiu António-Pedro Vasconcelos. Conheci-o quando ele para ganhar a vida entrou na publicidade. Não éramos íntimos, mas sempre que nos encontrávamos dedicávamos uns momentos a falar da Nouvelle Vague: Truffaut, Rohmer, Godard, etc. Tinha simpatia por ele, era um homem simples, com quem era agradável conversar. Descasa em paz porque a vida não te foi leve.