domingo, março 10, 2024

Domingo, 10.

O bocejo de um domingo na capital. Levantei-me pelas seis da manhã para ir a Lisboa com um dia movimentado. Que começou com a missa das nove na igreja do Loreto, ao Chiado. Fez dois anos que a Maria Luísa nos deixou e a celebração foi por sua intenção. Na nave central éramos doze fiéis, a maioria tão velha como o celebrante, digno, lento de gestos, alto, aprumado na sua casula rosa, muito bonita, que eu tive dificuldade em ouvir, porque a voz saía-lhe arrastada e cavernosa. Depois entrei ao lado na Brasileira para um café e, como tinha levado o computador, aproveitei para avançar no romance. Nada de significativo porque me enervei possuir aquele privilégio de ter sempre à disposição uma mesa quando os turistas em fila esperavam por ela. Saí. 

Fui plantar-me na paragem do eléctrico para subir ao Príncipe Real minha antiga residência e onde permaneço com direito de votar no Liceu Passos Manuel. Estou na paragem quando vejo surgir do fundo do Chiado um tipo vaporoso, com uma grande capa de abas largas, botas até meio da perna, espécie de rainha acabada de deixar os aposentos reais. Aproxima-se e senta-se no rebordo do prédio decerto porque a autarquia tem dinheiro a mais e anda a desmontar todos os abrigos dos transportes públicos. Quando o veículo se aproxima, ele vem para o meu lado e entra comigo. Acomoda-se no banco em frente, todo ele aéreo, quase espuma, falando alto, diz-me: “Fui votar no Pedro. - Pois eu vou votar agora contra o Pedro – digo-lhe. – Cada uma vota em quem lhe parecer. Aquela que tiver mais votos é a que ganha”, disse abrindo a capa e expondo a braguilha, talvez por descuido, aberta sem que algo se visse e vaporosa pôs-se a olhar a cidade no limite do horizonte. “Elas andam todas muito ressabiadas”, murmurava como se falasse consigo, o olhar estendido sobre o casario. Olho-o agora com atenção. Tem um rosto alongado, cabelo cortado à escovinha, como aqueles jovens oficiais nazis, que faziam a vidinha amancebados com os do topo, tudo em segredo porque às claras combatiam com a morte aquilo que gozavam no segredo dos quartéis. Diz-me adeus quando me preparo para descer no jardim.  

 Abro os olhos e vejo-me com vinte anos quando aluguei uma casa pombalina com bancos de pedra nas janelas de guilhotina. O jardim do Príncipe Real, é uma sombra do passado. Atravesso-o em diagonal para entrar na rua que vai descendo até à Academia das Ciências. Paro em frente ao prédio onde iria viver não fora dar-se o caso do Alexandre Patrício Gouveia ter mudado de ideias. O João Biancard até havia feito o projecto que uniria os dois andares nas traseiras por uma enorme parede de vidro. Fecho as recordações e vou em frente. Mas por onde passo, abrem-se persianas e portas, os prédios antigamente vetustos, exibem hoje caras pintadas a gosto e tradição e o silêncio que ali reina - pelo menos àquela hora -, é sagrado como sagradas são certas lojas e cafés que sobrevivem à fúria do lucro que é o senhor que varreu das nossas vidas o Dia do Senhor, para acomodar o dia do fric, do dinheiro, do money, do cansaço dos empregados, do esgotamento dos imigrantes, do furto do silêncio, da paz e do sossego. 

Entro no enorme portão do antigo liceu. Alguns eleitores, meninas à entrada a oferecer flores a troco de uns euros. Vou em frente certificar-me se ainda sou dali, daquele bairro onde morei uns quarenta anos, ou mais porque desde sempre vivi perto na Rua do Salitre. Toda aquela artéria até ao Chiado viu-me passar vezes sem conta, eu admirei os varandins das casas antigas, entrei nas igrejas, nos pátios, nas esconsas  casas de corte e costura, nos bares gays que proliferavam por todo o bairro e eram a atracção do turista da época conduzido até ali pelos guias de turismo, nas mercearias onde me cruzava com a Simone de Oliveira e ela me atirava: “Quando me vir a comprar nestas lojas é porque o dinheiro é pouco.” Sacudo as recordações antes de entrar no velho edifício de uma dignidade majestosa, com aquela escadaria que se abre em dois lances até ao primeiro andar do velho Convento de São João de Nepomuceno. No pátio entro na fila da secção 4 e vou esperar uns vinte minutos para “exercer o direito de voto”. Ouço nomear o meu nome, e digo para os meus botões: “Estás a ver ainda te reconhecem como vivendo na Rua de S. Marçal” e encho os pulmões de satisfação. Dei o meu voto ao (espera é secreto) e saí atravessando o claustro em diagonal. 

Chovia. Não tinha guarda-chuva, mas blusão impermeável com capuz. Entrei por cima, saio por baixo em direcção à calçada do Combro. Daquele lado, grandes transformações, muito comércio de comes e bebes, portas-meias com uma funerária um bar dito gold pressed juces, os turistas são tantos que eclipsaram os nativos. Não vejo à direita nem à esquerda nenhuma tabuleta em português e aquilo parece um sítio remoto de uma qualquer vila do Reino Unido ou do States. Nas esplanadas, sob toldos, escarranchados de perna aberta, estão raparigas e rapazes, casais com filhos de carrinho, o olhar vítreo perdido no enxame de abelhas da sua raça. O eléctrico 28 passa cheio uma vez e outra. Farto, tomo um táxi. Desculpo-me ao motorista pela curta distância até ao Chiado, falo do transporte que vem já cheio de turistas. “Isso é uma praga”, diz-me ele. “Não vão para os hotéis, alojam-se nos B & B, nos hostals, nos alojamentos locais. Não têm cheta, comem uma refeição mal amanhada, bebem da água das casas de banho, gastam o mínimo porque não têm dinheiro.”  Contraponho que a construção de hotéis é mais que muita. Ele não se demove e atira: “Tudo isso vai à falência não tarda.” Será que o homem sozinho vê melhor que a equipa governamental inteira de António Costa e do presidente da Câmara de Lisboa? Abri ainda mais a mente, mas não era domingo, era segunda-feira: as lojas a funcionar, a actividade comercial pomposamente a cavalgar sobre o Sétimo Dia em que Deus descansou como narra o Dia da Criação. 

         - Já gora, embora o texto vá longo, ainda me atrevo a reflectir convosco. Deu-se o caso, ontem à noite, ter sido tomado pela sorna. Quando o tédio nos assola, temos o hábito (mau) de ligar a TV. A BBC falava do que falam os outros, os canais italianos idem, TV5 Monde uma parlapatice. Então espreitei os nacionais camuflados no passado que a tia Dália adorava e eu via a seu lado: o Festival da Canção. É suposto aquela coisa representar Portugal na Eurovisão. Contudo, não dispensando o nosso tradicional provincianismo, o que observei foi portugueses a cantar em inglês. Bah! Então é um festival português ou inglês! Alguém imagina um inglês a escrever uma canção e a cantá-la em português? Somos mesmo pategos e atrasados mentais! Ou então o mundo está invertido e a patetice está em todo o lado, a identidade a escapar-se para igualar na diversidade imbecil e hipócrita. Aqui como no futebol onde equipas nacionais disputam outras de outros países, mas, vai-se a ver, são poucos os portugueses e a equipa “nacional” é composta de estrangeiros. Que ridículo o mundo dito moderno! Agora o que eu vi porque ela quis que todos víssemos, foi as maminhas laricas da apresentadora. Vale tudo naquele mundo idiota e mesmo aquelas que são já sacos de café, abrem discretamente um vale que vai por ali abaixo e nós mergulhamos com um sorriso de surpresa sem rede. Por favor não divulguem isto, de forma a não serem acusados de assédio sexual... Não deve tardar muito, vermos os rapazes machões a exibirem galhardamente o que têm entre as pernas... Os famosos direitos de igualdade assim ditam.

         - Hoje fartei-me de andar como anota o meu iphone: 5,5 km andados, 4 lances subidos, 7362 passos, 7,55 horas de sono.