sábado, janeiro 20, 2024

Sábado, 20.

Toda a gente conhece o senhor Alain Delon. É dele que vou falar hoje. Está com quase noventa anos, vários AVC, vive na sua propriedade a quarenta quilómetros de Paris, com 120 hectares, que eu um dia conheci quando o actor quis comprar uma viatura antiga à Annie e ela não lha vendeu. Pois o homem tem três filhos de cada mulher, dois rapazes e uma rapariga, o mais novo com vinte e poucos anos. As desavenças entre o pai, a governanta que dizem ser uma espécie de amante e os filhos, andam na praça púbica, quero dizer na televisão e jornais. Isto porque Delon, não se entendendo com o mais velho e o último, decidiu repartir a sua imensa fortuna deste modo: 50 por cento para a filha, os restantes 50 por cento para os dois rapazes. Com isto a guerra está instalada enquanto o velho Samurai agoniza, só, na mansão rodeada por uma equipa de seguranças profissionais que não deixam os filhos aproximar-se. A filha que vive na Suíça e tudo controla, para o isolar dos irmãos, fá-lo viajar por estrada até à clínica que a ela convém que o pai fique, aonde Delon chega esgotado; enquanto os outros lutam para que o pai morra no sítio onde foi feliz e construiu residências independentes para cada filho e insiste querer ser sepultado perto dos seus muitos cães que ele diz terem sido os seus mais fieis amigos. Aos ouvidos do enfermo, chegam estas disputas e o murmúrio do actor: “Douchy est ma terre, les chiens mes enfants:” 

         - A Piedade, tendo perdido a filha única num acidente de viação, ficou a tratar do neto dos onze aos 38 anos que é a idade que ele hoje tem. Depois de uma adolescência muito complicada que meteu drogas e tudo o mais, vieram as complicações com o álcool, as mulheres, o bisneto. Pelo caminho o neto quis vender um andar que ela possuía numa povoação aqui perto, a mãe da criança afastou-se dele devido ao vinho e às agressões e também à africana que se instalou na casa da avó e lhe faz a vida negra. Ambos não trabalham, dormem até tarde, ignoram a dona da casa e nem a levam ao médico, compram os medicamentos, dão-lhe a tenção que lhe é devida. Esse trabalho sou eu que me encarrego, deixando claro que é a ele que compete essa obrigação. Falo com ele, mostra-se correcto, mas não mexe uma palha e a pobre da Piedade sente-se só, abandonada por aquele que ela julgava o ser mais próximo da sua vida. Os milhares que lhe coube da venda do andar, aconselhei-a a pôr numa conta com o irmão – o mesmo que em tempos juntou as suas economias às dela e nunca lhe deu os correspondentes juros. A piedade, sendo uma mulher esperta, é quase analfabeta. 

         - Se cito estes dois exemplos, diferentes na grandeza da riqueza envolvente, mas iguais na tragédia é para reflectir sobre o estado da família tão deificada por todo o lado. Eu sempre fui muito séptico nesta bênção unânime que tanto jeito dá ao consumo, às religiões e á política. A condição materialista das uniões familiares, são, estou certo, quando tocadas por estes modelos, motivo de profunda decepção. É usual ouvir-se dizer que os filhos são os enfermeiros dos pais e avós, têm a obrigação de corresponder ao investimento emocional e material dos progenitores, mas os lares e hospitais são o resultado inesperado dessa expectativa, assim como o facto de haver ou não riquezas que correspondam à dedicação e, se possível, a brevidade da vida. Abro um parêntesis para aconselhar a este propósito a leitura de Misericórdia de Lídia Jorge. Eu não sei como vou findar. Mas sei que não morro com o humilhante desgosto de ter acreditado numa instituição, em entes queridos, que me abandonam ao trabalho solitário da morte.  Curiosamente, uma só vez fui hospitalizado e foram os amigos que se incumbiram de mim.