quarta-feira, janeiro 10, 2024

Quarta, 10.

Quando vou a Lisboa como foi o caso ontem, levo comigo o croché e tricoto pelos cantos que encontro. Tenho sempre o sentimento que esbanjo o meu precioso tempo quando me deixo arrastar por convites ou tertúlias a maior parte das vezes inúteis. Sem contar com gastos em almoços e transportes e distrações que me levam ao engano. Acontece que nestes últimos tempos recuei aos meus tempos de juventude e a um corpo disponível para a aventura. Constato que de nada serve ordenar à natureza que se renda aos anos quando a mente continua efervescente e disponível para todos os pecados que inundam os espaços de liberdade. Muitas vezes faço como Julien Green e fecho os olhos à beleza que se expõe nos nossos dias com o orgulho vão de se exibir através da provocação que é de si a sensualidade mais arrebatadora. Noutros tempos, a fase de namoro era um caminho de santidade, que impedia o pecado de se apresentar na sua forma arrojada e tentadora; hoje, com o pecado banido dos conceitos morais onde monta e se espoja a liberdade, o que vem ao nosso encontro é quase só a imagem banal sob formas caricaturadas do desejo que exige realização imediata. Vergílio Ferreira diz algures que já no seu tempo, a chance de dois seres se entenderem no quotidiano, tinha de passar pela “prova da cama”. Entretanto, o tempo não parou e parece-me que o teste da cama foi ultrapassado, porque a velocidade que o tempo tomou não se compadece com os trapos que usamos e são um empecilho à aflição em que se encontram os corpos entregues à banalização dos dias deitados na cama vazia e fria da nossa condição. Quem somos, o que sentimos, o que vemos no outro como complemento de nós próprios, não conta para a chama que nos fulmina com o olhar, o corpo dengoso, a crueldade do desejo estampado no arrojo sublime, que empareda os corpos na sofreguidão que não deixa o tempo e as palavras acontecer. Há muito que o amor se ausentou. Porque o amor é lento, amacia as frases, contorna os maus odores, embeleza o corpo de um júbilo íntimo, que nos deixa a pensar e estende as vigílias por madrugadas inopinadas. Ocupa demasiado os dias, é invasivo, ama o êxtase, reforça os sentimentos, projecta cada ser humano para lá da sua condição carnal e obtusa. Mas dá trabalho, os corpos eternizam no prazer tempo excessivo, o fogo arde em murmúrio secreto, falta-lhe o ímpeto da descoberta que se oferece ao virar da esquina, na esplanada inventada para seduzir quem está livre para o inesperado, na carruagem de comboio antes da chegada, depois dos olhares cúmplices se terem saudado e a fatalidade ter chegado ao percurso programado...