sexta-feira, outubro 06, 2023

Sexta, 6.

Ontem apareceu Alice com amigos e o dia foi gozado no esplendor da liberdade. Há muito que não tinha um dia livre de ocupações literárias ou outras e que bem me soube. Partimos daqui para uma visita ao castelo de Palmela, onde eu não ia há uma data de anos, tendo sido confrontado com as mudanças e melhoramentos do histórico lugar. Nem com tudo concordo, mas grosso modo o que era de conservar ficou. A dada altura quis mostrar o anfiteatro aos amigos que vivem na América, mas a funcionária diz-me que está fechado “porque os visitantes roubam os projectores”. (Eu bem me esforço por dignificar esta terra e seus habitantes, mas resvalo sempre na miséria que nos cerca. Desde papel higiénico a autoclismos, tudo desaparece.) Seguimos depois para Setúbal em busca de um restaurante. Sugeri aquele que antes frequentava, do Sr. Armando, que fica em frente ao embarque para Tróia. Logo à chegada perguntei por ele: “Já morreu há ano e meio com cancro na próstata.” Bom. Abancámos na esplanada, sob calor difícil de suportar, embora ali circulasse uma aragem. Outra confrontação: o preço. Este em ano e meio duplicou. Por isso, por todo o lado, a frequentação sendo muita, não se compara àquela que existia quando eu jantava ou almoçava fora com assiduidade. Os americanos quiseram oferecer-nos o almoço e ali estivemos em boa e saborosa reinação. Sugeri fôssemos à Pousada de S. Filipe tomar o café, até porque o dia era de visitas. Lá no alto, tudo tinha mudado também. Não só nos preços, mas na frequentação: a massa popular que destrói e amassa tudo numa bola de mau-gosto, esparralhada, de perna aberta e aos gritos, tinha tomado conta do alpendre sobre a praia de Albarquel no sopé da montanha. Por sorte, daí a pouco, vagou uma mesa e lá abancámos para a bica acompanhada de tortas de Azeitão. Eram já quatro da tarde. Tinha ainda planeado uma visita pedestre pela zona antiga da cidade setubalense, mas o tempo urgia e optou-se (o homem do casal é amante de vinhos) por visitarmos a Quinta do Aljube com o seu vinho de excelência. Aí chegámos meia hora depois, e encontrei o mesmo degradante espectáculo que o pouco dinheiro nas carteiras dos portugueses provoca: exibição da grandeza, do novo-riquismo que se vê e crê igual aos capitalistas que eles combatem, o exagero do vinho comprado, tomado, melhor dizendo, entornado garganta abaixo. Talvez aí tivesse ido a última vez com a Maria José que nas imediações tem atelier o ano passado. Mas tudo muda e rápido. Voltámos para casa por Azeitão que os amigos também não conheciam. Aqui chegados, convivendo um pouco mais no terraço, a tarde amenizada, lográmos fazer o balanço de um dia absolutamente luminoso. Um grande e pesado silêncio ficou quando o seu confortável carro deixou este espaço. 

         - Adoraria deixar este país. Não me sinto aqui bem, não quero fazer parte deste aglomerado de gente infeliz, governada por um bando de malfeitores, que tudo vulgarizou e arruinou, onde falta tudo e sobretudo a honra, a seriedade, a palavra dada, a competência, o futuro. Estamos, literalmente, abandonados à bicharada.