sexta-feira, outubro 20, 2023

Sexta, 20.

Dia hediondo o de ontem. Fui como o agendado à consulta. À chegada à Avenida de Roma, uma tromba de água deixou-me completamente encharcado.  Apanhei o 727 para o Rato e quando desembarquei, outra monumental chuvada que tornou as ruas intransitáveis. Saltando pé ante pé para não me afundar nas poças, consegui refúgio na papelaria onde esperei um bom tempo que a coisa amainasse. Qual o quê! Outro remédio não tive que subir para a Estrela e um pouco antes descer a rua que me leva ao Centro de Saúde. A consulta foi rápida recusando eu como sempre medicamentos, vacinas e assim. Pobre da minha divina doutora Vera Martins que tem de aturar um doente tão chanfrado! De regresso ao Rato, enfiei-me no 1900 para almoçar e ver se a tempestade desaparecia. Puro engano. Valeu a refeição a um preço cordato e à minha maneira de comer: arroz de tomate com pataniscas de bacalhau, um fino, rematando café com um sonho, tudo por 11 euros. Ante o aspecto sinistro do dia, quis regressar imediatamente a este paraíso. Vai daí esperei pelo 727 uns dez minutos. Entrei atrapalhado com o guarda-chuva, a mochila, a carteira onde tenho o passe, todo molhado, irritado. À chegada ao Campo Pequeno, somos literalmente despejados, sem explicações, apenas que devíamos aguardar pelo próximo veículo.  fui pedir esclarecimentos ao motorista que estava a almoçar ao volante. Ligeira fricção entre nós e ordem de ir esperar o transporte para a Av. EUA. Fui. Quase meia hora depois, veio outro 727 que, enfim, me deixou na estação de comboios. Só que, só que. Quando deitei mão ao bolso das calças, não havia carteira. Pânico. Invocação divina. Paralisia. Sensação de ter sido atirado ao alto-mar. Depois acalmei e pus-me a pensar como poderia sair daquele sufoco. Pensei viajar sem bilhete porque, evidentemente, não possuía um tostão. Depois refiz todo o trajecto. Pensei quando deixei o restaurante se havia sido roubado sem dar por isso, e de súbito tive a nítida certeza que a carteira tinha tombado no autocarro quando da atrapalhação por que passei. Logo de seguida recordei-me que o João tinha passado por situação idêntica e telefonei-lhe. É ele que me dá todas as indicações: que voltasse ao início do percurso e aí tentasse falar com um motorista. Assim fiz. Este deu-me o número do telefone da Carris e fui atendido por um sujeito muito simpático que me informa ir contactar o condutor que eu indiquei. Quinze minutos decorridos, eis a resposta: “A carteira está na posse do motorista e o senhor deve aguardar aí pela sua chegada. Digo-lhe que deve demorar, pois ele está em Belém e com o temporal ainda pior.” Esperei como se costuma dizer sentado, pelo menos hora e meia. Ao fim da qual vejo chegar o autocarro com a chapa 1 fornecida pela Carris e quem vem nele, o homem com quem tinha tido a pequena caturrice. Diz-me de carteira na mão: “Pois é, a vida dá muita volta. Tá a ver!” Rejubilei. Verifiquei que nada tinha desaparecido: cartões bancários, passe, 60 euros, outros documentos. Estendi a mão de agradecimento com uma nota: “Você é uma pessoa decente, obrigado pela sua honestidade.” Dali corri ao Frutas Almeida onde o João me esperava com 200 euros de ajuda ao pobre coitado deixado pelo destino à sua sorte. Com ele fiquei até tarde à conversa. Bom amigo que em tudo pensou. E esta manhã, enviei um mail à Carris a honrá-la por ter funcionários daquele calibre e pedi-lhe que transmitisse o meu reconhecimento ao impecável homem. 

         - Como uma desgraça não vem só, pelas 18,30 recebo a triste notícia do falecimento da Teresa Magalhães. Ela tinha feito uma pneumonia no início da semana e transportada ao hospital de S. José onde chegou e ficou à entrada por não haver camas. Fiquei desfeito. E penso no filho que tanto ela estimava. 

         - Diz a propaganda que Portugal está entre os países onde o salário médio subiu mais que a inflação em dois anos. Alegram-se os patetas que já de si são alegres. Mas ninguém contextualiza o milagre socialista. Somos o país com mais baixos salários, com 11 mil pessoas sem abrigo (o dobro de há 4 anos), o salário mínimo mais baixo, greves de professores há dois anos, o SNS de pantanas, com os médicos e enfermeiros em greves quase diárias, a pobreza assustadora que não pára de crescer e podia ultrapassar os dois milhões se não fossem as esmolas que sua excelência o rei António Costa distribui aos infelizes, a paralisação da economia, do país no seu todo, vivendo a duas velocidades: a do governo nas altas esferas do delírio; a dos cidadãos a lutar pela realidade concreta das suas vidas. Como o enunciado agrada a Bruxelas, Costa não vê hora de lá se instalar e não ter que aturar um país de miseráveis que só sabem reivindicar dignidade e uma vida igual à que os eurodeputados têm. 

         - Vou citar Guy de Maupassant que vem ao caso: Je demande la suppression des classes dirigeantes: de ce ramassis e beaux messieurs stupides qui batifolent dans les jupes de cette vieille dévote et bête qu´on applelle la bonne Société. Ils fourrent le doigt dans son vieux cul en nurmurant que la société est en péril; que la liberte de pensée les menace!