quinta-feira, outubro 26, 2023

Quinta, 26.

Estou inteiramente de acordo com António Guterres. De resto, eu próprio aqui me tinha expressado de igual modo (ver sexta, 13). O que disse Guterres é do senso comum: “O povo palestiniano foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante.” Logo o embaixador de Israel nas Nações Unidas se levantou a pedir a demissão do secretário-geral da ONU, apoiado as palavras de Guterres quando disse que o HAMAS “não surgiu do nada”. A contextualização de António Guterres é corretíssima.  

         - Ontem fui com os Fonseca, a Leonor ao volante, a Vila Franca de Xira. Objectivo: ver a exposição da obra de Querubim Lapa no museu do Neo-Realismo. Sobre aquela e este, pouco tenho a dizer. Nunca me interessou o período neo-realista, à parte, talvez, os Esteiros, porque se circunscreveu demasiado às circunstâncias políticas e muito ao PCP. Não vejo sinceramente nenhum rasgo artístico numa obra que se propôs ser denunciadora do Estado Novo e, portanto, sabemo-lo hoje substituível facilmente por outro de idênticas promessas, mas de substância prática igualmente condenável. Os trabalhos expostos, não nos atraem porque nos oferecem apenas o instante que se evapora no drama e na pobreza, na miséria e no fluxo que regista um combate que se veio a revelar um logro assustador. Tecnicamente também não vislumbrei nada de novo, a matriz lúgubre a encher os espaços da tela, as personagens saídas de um mundo assustador, espécie de arte denunciadora que sabe de que lado está quem tudo apostou na fantasia político-social. O período da Revolução, tendo à frente o general Vasco Gonçalves, veio trazer ao Neo-Realismo uma assombração que o paralisou e o fechou à modernidade. E com ele aquela pobreza de cor, aquele esteticismo, que converge o  olhar para uma sombra embrulhada na dor, em tons de cinza, escuros, tétricos, sem rasgo criativo, tendo por base apenas a denuncia de uma época de facto sinistra. Mas depois, fechado o olhar, o que nos resta? Para os que resistiram à morte, o confronto entre o ideologicamente propalado e a realidade nua e crua de que a ideologia domina o homem transformando-o no objecto de muitos e variados crimes. 

O aguadeiro, 1954

Autoretrato 

A acrescentar a isto, desenvolve-se por toda a informação espalhada pelo museu, uma espécie de novo-riquismo da língua, um patuá armado ao culto, ao sabichão, que me perguntei inúmeras vezes quantos dos seus visitantes conseguiram decifrar o seu conteúdo. Aqui um exemplo. 

  

         - E com efeito. O museu, não sendo uma originalidade arquitectural, é uma peça arquitectónica que nos surpreende. Tem a assinatura do arquitecto Alcino Soutino e data de 2007. A sua volumetria é interessante e o interior concebido para expor com dignidade as obras; possui a dinâmica de passagem que corresponde à sua dimensão. Suponho que possui quatro pisos, com grandes espaços expositivos, onde circulamos com agrado e dão forma e visibilidade ao circuito interno da visita. A recepção é magnífica, com pessoal amável e, sobretudo, magnífica apresentação da literatura museológica como cartazes, folhetos, livros agradavelmente paginados com arte e sabedoria. Se tivesse sido inserido num jardim vasto que o salientasse, seria ele próprio a obra de arte por excelência. Assim como está, encafuado num aglomerado de casas feias, ruas estreitas, e urbanismo desequilibrado morre e desaparece consumido pelo cinzento que o reduz a um mero edifício abandonado à sua sorte. 

         - Como toda a cidade. Governada pelos comunistas durante décadas (as últimas eleições puseram no poder os socialistas), é a imagem que o poder local exprime quando ao seu leme estão autarcas com pouca cultura, sensibilidade e grosseiros modos de ver o erário público. Toda a cidade é feia, mal elaborada, onde ruas e edifícios dão a imagem de um imenso bidonville, vegetando por aqui e por ali, numa azáfama de labirintos à escala desumana, toda uma população que a vive quando chega exausta para dormir e, por isso, não pode amá-la e ser feliz dentro dos seus muros. Um horror! Eu se tivesse de ali morar e viver, morreria antecipadamente de mágoa, solidão, tortura e revolta.