quarta-feira, junho 21, 2023

Solstício de Verão.

Outro dia dei um salto a Aveiro em visita de médico e amanhã vou a Badajoz com a Maria José nas mesmas condições. Se recordo este facto é porque, dando uma grande volta pela cidade aonde não ia há uma data de anos, encontrei muita diferença do meu ponto de vista para pior. A dada altura, cumprindo as indicações de Ernst Junger (não tenho diérese), entrei no mercado coberto. Forma de falar. Porque de súbito chego a Londres dos meus vinte anos. Eu explico. Em Kilburn onde residia (não confundir com West Kilburn a localidade chique, por quem sois), no lar onde fiquei hospedado, todas as manhãs era-nos servido o breakfast. Entre a trapalhada de coisas que nos davam, uma encantou-me até hoje: a compota de laranja amarga. Venho a encontrá-la no mercado vendida por uma senhora de nacionalidade ucraniana, muito janota e séria (já explico). O frasco terminou esta manhã e durante todos os pequenos-almoços até hoje, revi a sala de jantar do edifício de dois pisos, o ambiente quente e barulhento, a atmosfera de felicidade que me invadia e o trajecto até ao centro onde tinha aulas. Acontece que nesse caminho, viajava comigo um colega brasileiro, rico, apessoado e trolaró como são quase todos os da sua nacionalidade. As diabruras entre nós, sacudiam os dorminhocos e circunspectos ingleses e na carruagem do metro onde seguíamos, tínhamos os olhos admirativos sobre os selvagens na força da juventude. Nunca consegui convencê-lo a acompanhar-nos, a Christian e a mim, a qualquer museu ou igreja. Mas íamos bastas vezes juntos almoçar ao Swiss Center nas costas de Regent Street no caminho para a City of Westminster. Suponho que só uma vez me deixou pagar a refeição. Era um rapaz que dava nas vistas, pela sua jovialidade, o seu temperamento solto, alegre, que enchia os minutos e saltava sobre os dias colhendo deles a heroicidade da vida. Quando me vim embora, continuando ele por lá, vi os seus olhos grandes e negros marejados de lágrimas. Quem diria! Benditas memórias que me fizeram reviver um tempo nestas manhãs submersas de incerteza! Quanto à seriedade da vendedora, tudo se resume ao esquecimento da minha carteira sobre a sua bancada. Ela devia conter uns trezentos euros e foi com aflição que entrei no mercado no seu encalço. Topei-a ao fundo, toda sorrisos, o braço estendido para devolver o que não lhe pertencia. (Não descreias das pessoas, miserável ser.)  

         - Há dias, na 2 francesa, assisti com interesse à entrevista de mais de uma hora, ao multimilionário Elon Musk. Gostei. Gostei francamente. Calmo, cordato, um sorriso discreto a aflorar com as respostas, simples nos modos e no tom de voz, quem não o conhecesse não diria que é o homem mais importante do mundo nesta altura. Sobretudo, o que me fascinou se for sincero, foram as suas propostas sociais e ecológicas; as repetidas vezes que disse ser a liberdade de expressão um marco importante que ninguém tem o direito de erradicar. Há nele um discurso para o longo prazo, coisa que não é vulgar nos capitalistas americanos ou outros. Homem da IA adiantou que devíamos retardar a sua implementação por ser demasiado perigosa para a humanidade. E deu exemplos do aproveitamento para a manutenção de regimes ditatoriais, liquidação de adversários, etc. Aconselho a sua audição. 

         - Ontem fui ao Dr. Cambeta. Antes passei na Brasileira onde encontrei os do costume mais um outro que não conhecia e, pelos vistos, disse-me o Virgílio, adorador da guerra na Ucrânia e de Putin. Pobre coitado. O nosso escultor, diz-me entre dentes: “Vou sair porque não posso ouvi-lo mais” e abalou. Segui-lhe o exemplo. Despachado do pouco que havia a fazer no consultório, estando paredes-meias com o Corte Inglês, fui lá almoçar. Encontrou um ex-colega da Rádio Universidade que não via desde os tempos fofos. X foi conhecido, trabalhou para além da rádio na televisão, nos jornais e está agora reformado. E coxinho, coitadinho. Disse-lhe: “Olha, é assim que vocês terminam todos; eu cheguei primeiro e tenho escola. Quando encontrar uns 12 na tua condição, abro uma academia e ensino a arte de bem coxear.” Pela cara que fez, não achou a ideia brilhante. 

         - O Verão começou hoje. Mas quem o atropelou foi o Inverno, deitando sobre o seu dorso toda a manhã grossos pingos de chuva, acompanhados de um manto compacto de nuvens escuras. Em certo sentido para mim, foi como se tivesse ido a Londres do meu tempo, e me deixasse flagelar com as cordas da memória.