quinta-feira, junho 08, 2023

Quinta, 8. 

Ontem passei na Brasileira a caminho do Gama Pinto onde tinha aprazado um exame ao estrabismo. Estrabismo que desapareceu provavelmente porque comecei a tomar Luteína. Bref. No velho hospital que eu tanto gosto, pelos diferentes gabinetes por onde tive de passar, só encontrei gente fabulosa: médicos, enfermeiros, técnicos. Por isso, custa-me deitar a baixo um sistema que possui gente de grande generosidade e competência. Não me lembro de alguma vez ter tido razão de queixa de quem quer que fosse nos (poucos) hospitais onde fui assistido. Desta vez porém, nem tempo tive para me sentar naquelas cadeiras duras do tempo de Salazar, e poucas páginas avancei no livro de Henry de Montherland que levei comigo. A médica precisa de mais exames para se enriquecer de forma a formar uma conclusão acerca do meu olho direito.  

         - O livro de António Costa Gomes, ainda não subiu à biblioteca de cima, porque raro é o dia que não releio os sublinhados. Trouxe do primeiro andar a obra que Yourcenar consagrou ao imperador, Mémoires d´Hadrien, para confrontar certas situações e rever este extraordinário livro que a escritora levou vários anos a pensá-lo e depois a compô-lo. O seu labor, estende-se por muitas cartas guardadas nos dois volumes de correspondência que a Gallimard editou há uns anos. Trouxe também aqui para baixo os massivos in-fólios (1543 p.), com as missivas trocadas com este e aquele historiador, este e aquele escritor ou leitor. O livro centra-se na construção da vila de Tivoli onde eu estive na companhia do Simão e por lá andámos a espreitar as recordações deixadas pelo imperador em memória do seu amante. Que conheceu com treze anos e até à sua morte, pelos dezanove anos, quando morreu afogado no Nilo segundo a lenda por amor e oferta aos deuses que prolongassem a vida do imperador. Não se sabe ao certo se foi acidente ou a vontade de o jovem eternizar o imperador. O que a partir daí aconteceu chega aos nossos dias na forma de inúmeros templos e até uma cidade, Antinoópolis, que Adriano erigiu forçando a deificação do jovem que nunca mais saiu do seu coração e se transformou numa obsessão na forma continuada de recordações e na saudade brutal que o abateu. A construção de Tivoli nos arredores de Roma, foi a forma que Adriano encontrou para permanecer com o amigo até a sua própria morte e levantar do chão todas os semblantes artísticos que o eternizassem. Cada estátua, cada altar, cada espaço de jardim, cada espelho de água tem a marca daquele que nunca mais o largou e que a morte não foi suficiente para os separar. 

Que tinha de tão especial o jovem Antinoo para além dos seus treze anos, que levou o imperador a sentir-se preso à sua natureza? Possuía aquilo que mais ninguém abarca: a singularidade que cada um carrega e o torna exclusivo. Claro, ao primeiro impacto, há algo que nos atrai independentemente da cultura ou da natureza obtusa que os nossos olhos captam. No caso presente, fora a voz do adolescente cantando ou declamando versos no meio da vinha, em Bitínia. Adriano, homem sensível, ouviu e viu um adolescente imprevisível, foi esse sentimento que o levou a pedir autorização aos pais para o levar consigo; para outros, nobres ou povoléu, um trejeito, um rosto, um cheiro, que sei eu, uma sintonia de obsessões que se materializam no objecto dos nossos desejos. Aquilo que nos faz únicos procura aquilo que no outro é singular. Como não há nenhum ser humano que seja idêntico, a escolha parece difícil no meio de tanta singularidade. Subjaz, todavia, um mistério que faz unir duas pessoas e permanece escondido aos olhos de toda a gente e inclusive dos próprios: a incógnita da preferência, os atributos que foram reunidos para a atracção e depois para a vida em comum. 

Antinoo, veio a descobrir mais tarde Adriano, encerrava em si apesar da extraordinária beleza física, um mistério, uma vida interior que se reflectia no olhar, na presença de algo que o paralisava, mesmo nos momentos íntimos quando os dois comungavam da natureza sensual que os unia, o jovem parecia ausente, perdido em mundos elegíacos. Adriano morre sem nunca ter podido decifrar o enigma chamado Antinoo, embora já em Tivoli, tivesse interrogado poetas, filósofos, rapazes do tempo do amante, numa busca perdida por retornar à presença do amor desaparecido tão cedo... O Senado inquieta-se e envia a Tivoli senadores capazes de levantar o moral do velho imperador, mas este corre com eles: “Deixem-me aproveitar a minha melancolia. Desejo aprender com ela. A minha angustia só a mim pertence e não quero partilhá-la com o Senado.” Quando Antonino Pio quis divinizá-lo, Adriano respondeu: “Eles não vão divinizar-me como fizeram a outros imperadores. Na realidade eu não sou divino. Sou apenas uma alma errante.” E de seguida: “Ao contrário, eles devem venerar Antinoo. Os seus bustos encontram-se em todo o Império, mesmo em sítios mais recônditos. O seu Templo, está quase acabado”, referia-se, suponho, ao santuário de Tivoli. A depressão nos últimos anos de vida era tal e tão profunda que Adriano, o grande imperador que ergueu o Império de forma tão grandiosa, parou as guerras, desenvolveu e administrou como poucos antes e depois dele, levou Marguerite Yourcenar a afirmar que se fosse só devido ao seu amor por Antinoo, importante contudo, ela não o teria imortalizado na obra acima referida. Adriano foi o vasto império, mais o outro lado que tanto prazer e aprendizagem lhe trouxe, mais a poesia e modos diferentes de viver a vida, de governar e preencher o seu coração, de olhar o seu próprio corpo. Plotine e Antinoo foram para Adriano duas formas diferentes de amor. 

Pelo menos duas vezes Adriano desafia a morte, desesperado pelos dias vazios do corpo do favorito. A Vila Adriana povoada de escravos e artistas, não é suficientemente atractiva, nem lhe traz de volta aquele que o seu coração não suporta a ausência. Antinoo ensinou-lhe que na vida há diferentes caminhos e todos podem ser caminhados, trouxe-lhe a musicalidade dos dias, a alegria da fusão de dois corpos num só, o encantamento das horas deitados lado a lado, olhando o firmamento estrelado das noites da Síria ou do Egipto, irrigou o seu interior de reminiscências suaves, humanas, frágeis e fortes, sentiu as suas mãos percorrer o seu corpo como memórias ancestrais que não perdoam ao tempo um olhar terno na contemplação de dois amantes enamorados. No desespero em que se transformou a sua vida, Adriano ordena a um escravo egípcio de nome Borio, por quem tinha afeição por lhe recordar Antinoo, que o matasse. O tempo passa e o escravo não vem para executar a ordem. Adriano vai no seu encalço e é informado que Borio se suicidou nos hangares da obra onde trabalhava. Segue-se outro escravo que igualmente recusa a ordem e finalmente o seu médico pessoal – nenhum teve coragem de atender a semelhante loucura. Até que é o próprio que vai tentar o feito saindo ferido. O oficial que o acompanha diz-lhe sendo ele o imperador de todos os romanos, pode alguém matá-lo! Resposta: “A maldição de Sartoriano vai acontecer. Eu que desejo morrer e não posso. Eles expulsam-me da vida e da morte.” Todo o drama do imperador, parece contido nesta perplexidade do livro La Sérénité Passionnée: “Il comprit mieux certaines nuits avec Antinoûs. Il sentit tout ce qu´il y avait de vitalité désespérée dans sa relation avec Antinoûs. Comment le garçon lui avait donné tout l´oubli qu´il y avait dans son corps. Comment même, avec ses caresses, il lui avait offert ce qu íl n´avait pas."