sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Sexta, 17.

Tudo o que este governo implementa, tarde e a más horas, tem sempre um mas. Nada é claro, transparente, lógico, cordato. Depois da famigerada lei Cristas que Costa não alterou, nunca mais os inquilinos de casas tiveram sossego, nem os jovens ousaram aventurar-se a alugar um apartamento por modesto que fosse. Surge agora um novo pacote para a habitação, fresquíssimo, e já com um assalto monstruoso de ameaças por parte dos senhorios, presidentes de câmaras, proprietários de Alojamento Local e não sei mais quem que neste domínio não faltam os especuladores.  

         - Para que não digam que o Executivo está mole, sem expectativas, ideias, pactos, investidas económicas e outras, eis que, por custos estratosféricos, o Ministério da Justiça apresentou com direito a vestido novo na televisão, a entrada de Portugal (dizem que somos o primeiro do mundo, não se riam que a coisa é séria) a utilizar a Inteligência Artificial pelo sistema Chatbolt, uma espécie de programa ao jeito dos discos pedidos que então existia nas rádios. A sigla GPJ (Guia Prático de Acesso à Justiça), pretende (dizem eles) simplificar o acesso do cidadão numa linguagem mais acessível à Justiça. E esquecendo-se que estão a falar com analfabetos - pois só eles possuem o dom do conhecimento tecnológico avançado -, informam que o modelo linguístico é o GPT-3.5, usado pelo ChatGPT da Open AI. Perceberam seus ignorantes e estúpidos? Orgulhem-se de serem portugueses e terem o melhor e mais original dos governos do planeta. (Aqui entre nós que ninguém nos ouve: toda esta maquinaria só tem um fim: que não os incomodemos pessoalmente. O funcionalismo público odeia ter na frente cidadãos revoltados contra os telefones que não funcionam, os funcionários que os tratam a baixo de cão, as demoras nos processos, as filas prolongadas de sublevados, as questões para as quais não têm resposta e assim). Não tarda toda esta parafernália tecnológica será destruída a pontapé por um povo enfurecido.  

         - Ontem fui ao Dr. Cambeta. No Fertagus, logo descendo os três degraus da carruagem, nos reservados a grávidas, coxinhos, coitadinhos e velhos xexés, estavam sentados, um em frente do outro, dois rapazes de uns vinte anos. O que ombreava comigo, tinha as pernas juntas literalmente a tocar o membrudo da frente, de coxas abertas para as acolher. O que era inquietante, é que durante quase todo o percurso (mesmo quando estivemos parados por causa de avaria numa máquina que vinha em sentido contrário), eles nem um sussurro tivessem trocado. Iam mergulhados numa espécie de abstracção ou alucinação que a paisagem alimentava. Mais o da frente, que o do meu lado entretido a marrar no telemóvel até certa altura. Digo certa altura, porque, de súbito, sem um sorriso, olhar, rumorejo ele pega não mão do parceiro e começa a acariciá-la. A coisa deu-se a meio do percurso e foi até Sete Rios quando ambos saíram à minha frente. Eram duas figuras estranhas. O da frente, de olho azul, rosto austero, cabelo cortado à escovinha, claro, ar sonhador, com uma espécie de gola que lhe chegava ao contorno do queixo, tatuada a negro, com galgos ou coisa parecida e as costas das mãos cobertas cada uma por uma cabeça de animal, que adornava inclusivamente os dedos. O outro, cabelo escuro, pestanudo, rosto redondo, cheio de ferro por todo o lado – orelhas, nariz, lábios -, mas ar decidido parecendo mais novo e, sobretudo, uns olhos melados, negros e expressivos, como os dos rapazes de Ticiano. Como nunca escutei um simples diálogo, imagino que a conversa se tenha esgotado durante a noite, entre lençóis, olhos nos olhos, tocados pelo arrebatamento que só o silêncio dedilha nos fios da noite, qual guitarra muda nos botaréus dos desejos que humedecem, fatigam e silenciam... 

         - Fui nadar meia hora à piscina da vila. Magnífico. Há dois anos e meio que lá não ia e soube-me muito bem o exercício. Quando vinha a sair, despedi-me das empregadas e empregados que encontrei na recepção. Uma delas gritou lá do fundo: “Até à próxima, senhor Helder!” Voltei-me e respondi: “Como é que ainda se lembra do meu nome dois anos e meio depois? Bela memória!” “Oh, não se esquece porque o senhor tem qualquer coisa!” Nem me dei ao trabalho de averiguar que coisa misteriosa é essa, farto de ser confrontado com o meu alter ego que desconheço. Já na rua diz-me um senhor careca de fino aspecto: “É. Olhe que ela tem sessenta anos!”