quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Quarta, 8.

Quando disse que o livro do cardeal bibliotecário não me desiludiu, referia-me ao que afirmei em 1 de Dezembro do ano passado. Quanto à leitura, grosso modo, não me desapontou embora também pouco ou nada tenha acrescentado ao que conhecia das Cartas e vida de São Paulo. Contudo, devo ser sincero que a primeira metade do livro me irritou, e me fez lembrar a obra de João Lobo Antunes, Numa Cidade Feliz, onde metade do trabalho são excertos de outros autores. Quanto à construção propriamente dita da obra, pareceu-me ter sido estruturada a partir de coisas esparsas – conferências, seminários, notas – porque a unidade é demasiado centrada em outros autores que estudaram S. Paulo e somam nada mais nada menos que 11 páginas, corpo 6 no final do livro. Depois, irrita-me sobremaneira, aquela forma de expor e desenvolver as ideias que tem de passar forçosamente pela complexidade do raciocínio, a avoejar ao pomposo, ao difícil como fazem os filósofos do século XX. Este exemplo, a ver se alguém me explica o emaranhado do período ( pág. 27): “Agamben defende que o essencial da reflexão de Paulo então “sobre aquilo que resta” e que a categoria do “resto” (leimna), um tópico que pertence à gramática profética e messiânica, funciona como chave de resolução da dialética “universal vs. particular” na teologia paulina.”  Ainda este outro pedaço (eles são muitos) na conclusão do que disse Giorgio Agamben: “ Neste sentido, o “resto” emerge “como um tipo muito peculiar de máquina soteriológica”, que metamorfoseia em todos os âmbitos (por exemplo, desde a noção de povo à noção de democracia) a cartografia do presente, introduzindo uma lógica nova. Não admira que Giorgio Agamben creia ser esse “o único argumento político real”. Como se vê, tatibitates puro. Nesta parte do livro, percebi a mistura que o ilustre cardeal faz da temática paulina com a política. É outra tendência da nova etapa da Igreja que bem compreendeu Lenine, quando aconselhou que para a destruir se  amalgamasse a política... 

A construção da biografia de Paulo de Tarso faz-se em torno das cartas 14 paulinas e dos Atos dos Apóstolos e também de Lucas, numa reedificação da vida e obra do apóstolo até à sua morte ou desaparecimento, em Roma, no tempo do imperador Nero. Os dois primeiros capítulos, parecem ter sido escritos para mentes elevadas, que adoram a cacofonia das palavras, a complicação do texto e a escrita em circuito fechado. Fizeram-me lembrar Vergílio Ferreira e o seu ensaio O Existencialismo é um Humanismo. Quando o li, fiquei no escuro e foi preciso ter voltado a reler Sartre para compreender o ensaísta português. Escrevi-lhe nesse sentido, dizendo-lhe que compreendi o Existencialismo melhor e mais profundamente através de Jean-Paul Sartre que lendo a sua explanação filosófica. Não me respondeu, como nada disse quando nos encontrámos mais tarde em Paris. Com Tolentino de Mendonça aconteceu-me o mesmo e, embora considere o seu projecto interessante sob vários pontos de vista, sobretudo os que o prendem aos aspectos teológicos, ficou-me, todavia, a impressão de ler coisas esparsas, reflecções alinhavadas, até porque não despeguei do que conhecia das Cartas e de S. Paulo através da biografia de N. T. Wright. 

Talvez devesse reter-me no subtítulo: Reler São Paulo. Neste particular, no meu caso, o livro do ilustre Dicastério, produziu em mim esse louco desejo de voltar a reler as Cartas do Apóstolo. E talvez de uma forma, como direi, mais profunda, mais rente à História, seguindo o divulgador da Palavra na sua luta por Cristo Jesus e nas suas obsessões doentias. Por exemplo. Metamorfose Necessária, nada diz do doentio desprazer do sexo em São Paulo. Aborda de passagem a circuncisão de Timóteo pelo próprio Paulo de Tarso, mas as sombras e o bosque onde ele se esconde continuam a exercer dois mil anos depois muita estupefacção e desgraça para os católicos. Foi mesmo a partir dele que a Igreja de hoje impregna de condenação todo o acto sexual tido à margem do matrimónio. Milhões de seres humanos foram afastados dos altares e sofreram tormentos profundos (caso de Julien Green) só porque a sua vivência natural tendia a ser anti-natura à luz dos cânones da Igreja, vividos e estudados sob os códigos paulinos. Pessoalmente, prefiro, neste particular, Santo Agostinho. Porque a doentia tendência de Paulo em se concentrar no pecado da carne, retirava a felicidade e o prazer que são obras de Deus, a toda a criatura humana, transformando-os num castigo incompreensível que nem os sacerdotes dos nossos dias suportam e daí o que se conhece de pedofilia nos dois sentidos: masculina e feminina.  

Não quero com isto dizer que os padres não devam estar sujeitos à castidade. Devem, mas estão como todos nós, constrangidos pelo pecado. Quando se escolhe a vida do sacerdócio, escolhe-se ser diferente, ser o representante de Deus na terra, junto de todos, pobres e ricos, pecadores e impenitentes sensuais. Não é pelo julgamento que pertence exclusivamente a Deus, que se deve exercer o magistrado, mas sim pela compreensão da complexidade do ser humano. Por causa de Saulo, a Igreja parece só reconhecer no sexo o erro maior, aquele que Deus não perdoa, aquele que nos reduz à alienação do sacrifício e da privação.  

Contudo, a páginas tantas, José Tolentino Mendonça, parece regressar a si, quase põe de parte o grande trote dos filósofos e teólogos que convocou desde o início do ensaio, e passa a dar-nos uma ideia do seu pensamento – o livro ilumina-se como por encanto. O discurso solta-se, torna-se menos denso de vocábulo rebuscado, as ideias circulam de página em página, livres das bengalas dos que no final do ensaio se apresentam. 

Uma nota para o revisor. As edições da Quetzal são habitualmente rigorosas. Noto à margem, como exemplo, nos dois últimos livros que li, Melancholia de Francisco José Viegas e Evangelhos Apócrifos, no primeiro detectei uma gralha e no segundo só uma. Ou, o mais certo, atendendo à personalidade do autor, estas para mim estranhezas, não passem de toques linguísticos próprios do nosso cardeal. Mesmo assim aqui ficam: “... o que é o amor senão aceitar permanecer numa absoluta vulnerabilidade, numa radical posição de franqueza diante do outro? (pág. 28-29)” ou “não podia não ser (pág. 77)” ou “não pode não ser (pág. 78)” ou “por isso, não pode não afirmar (pág. 107)” “A teologia cristã da esperança irrompe do inaudito evento em que Deus ressuscita (pág. 139)” “Evento!” Não seria antes acontecimento? O livro está cheio de “eventos” ou “A provação é o lugar onde se fortalece aquela confiança chamada a ser radical... (pág. 143)” Isto para não falar na quantidade da palavra “radical”, decerto muito moderna para o escritor ou, talvez, segundo a obsessão da Igreja, mais próxima dos jovens radicais.