terça-feira, janeiro 24, 2023

Terça, 24.

Apercebi-me esta amanhã do desastre que tem sido o afastamento do romance. Consagrando demasiado tempo a esta merdelhice e ao clima político do nosso desastre colectivo, afastei-me do meu verdadeiro trabalho, aquele que me dá satisfação e me preenche a existência. Vou ter que me concentrar nele de alma e coração, deixando a dispersão em que tenho vivido há meses – encontros, idas a Lisboa, almoços, um ou outro jantar – tudo formas aprazíveis de vida que me apartam do essencial. Vou, pois, impor-me o oposto: primeiro o meu trabalho criativo e só então o resto, incluindo este registo que, atendendo a monotonia da corrupção na base da qual está a obsessão da riqueza, fica limitado a contar a maneira de viver à portuguesa. É certo que através dele não me afasto da escrita e de algum modo a vou aperfeiçoando, mas o convívio com as personagens, o quotidiano com elas, a deserção da realidade para uma outra vida que se sobrepõe a esta, é absolutamente indispensável ao meu equilíbrio. Um diário também se faz do silêncio, da interioridade que vive em nós, das fantasias, do sonho travado pelas súbitas manhãs, pelo alongamento do pensamento ao limite das horas, no horizonte frio onde baila vadio a sombra do Sol. 

        - Meti na cabeça que tinha de terminar o asseio em frente à casa – e aconteceu. Andei para cima de três horas a cortar a erva que entretanto tinha brotado por todo o lado. Ficou uma verdadeira sala de visitas embora eu esteja feito em mil pedaços. É isto todos os anos. Já quando chego a Paris digo o mesmo: “Será desta que a perna ávida de vida vai encostar à box de vez e não vou poder calcorrear a cidade como sempre fiz?” Estou sempre na expectativa de que tudo pode parar de um dia para o outro. E não falo da morte, penso na idade que se aproxima, na vontade que pode esmorecer, no desinteresse por tudo o que é terreno e cada vez me diz menos, nas forças que podem declinar. Depois, graças aos meus anjos da guarda, abalanço-me sem receios, vivo no trampolim da dinâmica que não obedece a planos, e chego ao fim grato e admirado de saber que o entusiasmo e a vida não me abandonaram. Vou acender a lareira.