quinta-feira, janeiro 12, 2023

Quinta, 12.

Ontem de manhã passei no consultório do Dr. Cambeta e depois da uma da tarde fui ao encontro do João à Brasileira. Daí descemos o Chiado para abancarmos no Adega da Mó para um almoço demorado e bem regado de discussão (calma) sobre os mais diversos temas. A dada altura, João que não é dado ao humor, conta-me a sua entrada numa loja da Avenida de Roma para saber preços sobre o “corte dos braços e pernas”. A mulher era de têmpera e corre com ele de uma forma imperativa, levando-lhe “pelos braços 15 euros e pelas pernas 30 euros”. João não gostou da secura da proprietária e fugiu a sete pés. E para mim: “Tu entendes isto!” Apenas quando sou informado que era de fato que se travava. Eu tinha de passar no Corte Inglês para comprar uma caixa de chocolates que deveria levar ao Fortuna, não fora o facto de ele ter piorado e o Pedro me ter telefonado a adiar a visita. João, sempre contido nos gastos, leva-me a conhecer a cidade onde nasci e conheço melhor que ele que veio ao mundo no Norte, de autocarro. Tomámos o transporte em frente à Gulbenkian e saímos na Alameda; daí fomos num outro até ao meu destino (e dele) Av. de Roma. Trajecto demorado que de metro se faria num abrir e fechar de olhos. Ante a minha impaciência: “Mas mostrei-te a cidade!”

         - Umas seis pessoas foram esfaqueadas ontem na Gare du Nord, em Paris. O homicida foi preso e não se sabe os motivos de uma tal investida. 

         - Que dizer da entrevista feita pela senhora do Prós e Prós ao administrador da Caixa Geral de Depósitos! Que susto! Que assombração! Que personalidade saída de um braseiro de cifrões, cálculos, custos, ganhos e perdas! Nada transpirou de humano daquela figura banal, contorcida de esgares, que escolheu a paisagem fria da faculdade onde estudou e diz ser a que dá ao país os cérebros do tipo da sua madrinha, senhora Ferreira Leite para nos falar da sua triste vida, mergulhada na monotonia da economia, enquanto expressão de controlo, arregimentação e poder. Cruzes! Quem nos acode! De onde vem esta leva demoníaca de sábios que aprenderam a somar, multiplicar e, sobretudo, subtrair sem ter em conta o substancial, a realidade comum, por onde o sofrimento circula e a solidariedade escasseia, tirados a papel químico do ex-chefe de Estado, sua excelência o professor-doutor-economista-memorialista assanhado, Aníbal Cavaco Silva. Na ladainha pobre das palavras, ante a aridez, surge a lembrança do pai, poeta e escritor, a destoar do todo, seco de emoções, face de aço, testa enrugada, armadura ante o poder que isola, transforma em estátua, inexpressivo, sem um clique de humanidade que o identifique e agregue à realidade comum. Passou a entrevistadora e entrevistado um pano sobre o desastre das empresas e ministérios por onde a criatura passou, deixando um rasto de despedimentos, salários de miséria, pressões de toda a ordem, ameaças veladas, fecho de filiais, carga informativa à boa maneira da PIDE sobre quem precisa de empréstimos, deixando, todavia, que as instituições bancárias fossem prejudicadas com dívidas dos que sabem como fugir aos seus compromissos e enriquecerem ainda mais. A sensação que fiquei no final daquela encomenda, é que estive diante de um algoritmo que escapou a Euclides.    

         - Sobretudo, quando uma semana antes, diante da mesma senhora de frases feitas e conceitos rebuscados, entrevistou os arquitectos Siza Vieira e Souto Moura. Que lição! Que liberdade e respeito e carinho e amizade um pelo outro! Eles e sós eles, brilharam num diálogo franco e livre, feito de ideias e noções filosóficas, anulando completamente o terceiro elemento por inútil, sem préstimo para aquilo que era o trabalho de ambos, ignorando até as câmaras que os filmavam, ligados por laços sólidos, sem perderem a identidade própria, a arte em lugar sagrado, num mundo que ambos recusam padronizar, e pelo contrário lutam por humanizar contra os ventos da construção em altura, divisões pequenas, ao nível do que eu vi nos países da chamada Cortina de Ferro, verdadeiros sustos, bairros sombrios, minúsculos espaços apenas para deitar o corpo espezinhado pelo labor escravizante, o ser único que cada um de nós é, arremessado contra a solidão de quem perdeu de vista a liberdade e a felicidade.