domingo, janeiro 22, 2023

Domingo, 22.

Retomemos o dia seguinte, sábado, 14, depois de na véspera ter deixado os meus dois convivas a falar sozinhos no 1900, desci do Rato ao Chiado a pé, como milhares de vezes havia feito quando morava no Príncipe Real e trabalhava na Rua Artilharia Um. Desta vez as pernas não voavam, a cabeça não subia os céus de felicidade de me saber em vida, pleno de jovialidade, apaixonado, desejoso de me encontrar com amigos para tertúlias divertidas, seguidas quase sempre de ida ao cinema, ao teatro ou jantar no Bairro Alto. Naquele fim de tarde, caminhava com o peso de tudo quanto tinha dito e pensado a atafulhar o meu cérebro amargurado, condenando-me por mais uma vez ter entrado naquelas discussões ridículas, estapafúrdias, sem saída, encurraladas num beco armadilhado, onde uma simples síntese não cabe e eu conhecia de cor a arapuca da “história”, enterrada há uma centena de anos, e sempre ali reivindicada para justificar ou deturpar ou encobrir a realidade trágica da nossa triste classe política; da política tout court, selva de marginais de fato e gravata, péssimo português e provincianismo atávico, sem falar da gula convencionada ao erário público. Entrei sem dar por isso no metro e num ápice vi-me dentro do Fertagus e sem saber como em casa, a lareira acesa minutos antes pela Piedade e eu remoer as horas passadas naquele passa-tempo, espécie de púlpito onde o João gosta de pregar o sermão que todos conhecem e ninguém adere. 

No dia seguinte, ao acordar do trago único do sono, senti que qualquer coisa não estava bem: sentia-me instável, nervoso, borboleteavam sem compreende o que se passava. Depois de tomar o pequeno-almoço, fui recostar-me no salão e foi quando comecei a ter uma série tiques que me levavam a agredir-me, a dar palmadas com a mão esquerda no traseiro, a pontapear com a perna que as donzelas fizeram moldes para levar à Senhora de Fátima a outra e, de quando em vez, fazia caretas, interrogava as sombras, numa atitude de alucinado como já vira em pobres seres a que chamam doidos (doidinhos à maneira portuguesa) na minha infância. Pensei: “eis-me chegado ao momento que sempre temi: a cabeça estourou”. Como os safanões não paravam e até pareciam retroceder, voltei à cozinha e tomei um Valdisper. Hora depois, sentia-me cansado de tanto me agredir, falar com fantasmas, pensar que tinha chegado ao fim e a minha despedida iria ser em grande despachando pontapés a mim próprio, fazendo mofavas às silhuetas que dardejavam o ar. Então, tive uma ideia: enfiei goela abaixo um Sedoxil e outro Valdisper e telefonei a uma amiga que me veio buscar para me levar ao Centro de Saúde de Palmela.   

No posto público não estava muita gente, mesmo assim aguardei duas horas para me postar diante de uma menina, dita médica. Sem bata, estetoscópio, medidor de tensão, nada – apenas um computador. Contei o que me levara ali, ela teclou ou fez de conta, disse-me para apertar os seus dedos, levantar a cabeça e deste modo me remeteu às origens satisfeita por eu ter sido médico de mim próprio, aprovando o medicamento que tomei a aconselhando-me a engolir mais duas unidades do mesmo - coisa que não fiz. Apesar da amabilidade da minha amiga, preferi ficar só de modo a compreender o que se tinha passado, agora que me sentia mais calmo, quase normal. Devido ao adiantado da hora, já não almocei, comi duas peças de fruta e subi ao quarto para a sesta de uma boa hora. O serão foi calmo e profícuo em leituras: Julien Green (pág. 270), terminei o Evangelhos Apócrifos e um pequeno livro de duzentas e poucas páginas In memoriam – Jean Schlumberger.

Resta apurar o que me aconteceu. Talvez haja mais do que um motivo, mas julgo não andar muito longe se disser que não suporto o clima político-partidário em que o país se encontra sob a batuta (ainda por cima) dos ditos socialistas. Isto está uma merda, um lodaçal de que falava Guterres bastante mais educado que eu, um atentado à democracia, à vida de cada um de nós; um país como nunca dividido entre privilegiados e servos, entre os muito ricos e os muito pobres, os que trabalham de sol-a-sol e os que se divertem a “trabalhar” e despedem-se para receber indemnizações milionárias que lhes permite adquirir um apartamento e viver do aluguer. Admito que arranjei devido à minha sensibilidade social uma depressão e daí não aguentar as balelas dos Joões deste canto infeliz, abandonado à sua sorte, o Estado a carregá-lo de impostos, a falta de justiça, onde o dinheiro abunda e a ganância cresce, numa total indiferença por aqueles dois milhões de pobres e os outros que a eles estão encostados a viver das esmolas do Estado, numa sorte de indignidade beata-social que me leva ao desespero. Morreram os ideais, as doutrinas, as filosofias, a solidariedade, o outro enquanto imagem, origem e substância de cada um de nós, morreu a política e os políticos honrados, o humanismo e o cristianismo, as religiões e os tratados existenciais, ficou um grupo de malfeitores, à semelhança da Máfia, que se governa entre si, combina assaltos, distribui benesses, milhões, trafica influências, desorienta o equilíbrio, prende, faz descer sobre todos nós a maior suspeita de que há memória – somos descartáveis. 

A geração que se põe em bicos dos pés para enxotar os que ocupam hoje o poder, não é melhor: traz consigo os mesmos tiques, a mesma ambição, os mesmos trejeitos, esgares, slogans, matrizes. É urgente mudar tudo isto, pôr de parte o pregão marxista-leninista, os pretensos liberais, a beatice cristã, todas estas hipocrisias, assim como o regresso ao passado. Precisamos de gente honesta, sabedora, equitativa, sem falsas teorias. Estou farto da hegemonia da esquerda, não suporto as queques insuportáveis do BE, nem os matulões grosseiros do PCP, nem o ar seráfico dos pdgs do PSD ou os arruaceiros do Chega.