quarta-feira, abril 07, 2021

Quarta, 7. 

Saiu o Relatório Anual de Segurança Interna do ano passado. Nele se diz que houve um aumento de ciberespionagem “de origem estatal”, sem se explicar de que países se trata. O Público que deu a notícia foi mais além e chegou à conclusão que se fala da China e da Rússia. À primeira interessa-lhe espionar instituições de saúde (claro, naturalmente), à segunda entidades ligadas ao Estado. O que é surpreendente é a cobardia do documento todo tremeliques face a países onde impera a ditadura. Mais uma vez somos fortes com os fracos e fracos com os fortes. António Costa, às perguntas do jornalista, disse nada ter a dizer sobre o assunto. Como se vê é um homem corajoso e zelador dos interesses nacionais. 

         - No dia do Pai (parece que há um dia assim designado; quem diria sabendo que pais, avós, tios acabam nesses hospícios que crescem como cogumelos por todo o país chamados lares ou mais hipocritamente residências para seniores!) o Filipe mandou-me esta sms: “Parabéns, “pai” o Helder foi o meu pai na publicidade, foi o meu primeiro emprego, quem acreditou num puto que pouco tinha trabalhado, embora neste momento não esteja melhor a nível laboral não posso deixar de lhe agradecer por isso, obrigado, um abraço.” 

         Filipe é uma pessoa original. Se o seleccionei na altura – já lá vão vinte anos! – foi por ter visto nele um ser humano onde imperava o desassossego, a inadaptação e, naturalmente, a necessidade de trabalhar. Não me lembro de nunca o ter visto chegar à agência com o mesmo look. Todos os dias aparecia diferente: um brinco, uma écharpe, um corte de cabelo, um amuleto, uma roupa onde não batia a bota com a perdigota e um estado de alma que ora levava adiante o trabalho com criatividade e sentido, ora patinava fazendo n´importe quoi. Uns dias era o “arrancanço” total, outros uma merdelhice que me levava ao descontrolo. Hoje, casado e pai de dois filhos, com quarenta anos, permanece o mesmo que a foto documenta. Quem o contactar para o telemóvel, é recebido com esta foto que continua a marcar a sua personalidade. Viva a originalidade e a loucura! Farto de gente arrebanhada ando eu! Nunca nos separámos de vista, é leitor atento deste diário e não deixa escapar qualquer corruptela que se insinue no texto. Farto de gente politicamente correcta, subservientes como não havia tantos no tempo do fascismo, idiotas com certezas que nunca se enganam, mendigos da esmola pública, arregimentados em torno hoje da hegemonia da esquerda e amanhã da direita, tipos cheios de tiques de importância, broncos que falam como lhes ensinaram nos bairros de lata de onde emergiram para a fama da dupla vida que não os larga. 

         - António matava-me se não aparecesse à reabertura da Brasileira. Lá fui pois, segunda-feira. As mesas em frente à entrada, foram ocupadas pelo grupo de habitués: Virgílio, Maria Luísa, João, Mário (advogado) a quem abracei nas tintas para o corona com a simpática companheira, Guilherme, Teresa, Castilho e dois outros que não recordo os nomes. Havia no ar desde que entrei no comboio uma fanfarra de cor e alegria. No Chiado o movimento era corrido, o reencontro com os amigos um aceno de normalidade apesar das máscaras e da distância, do sol a encharcar os espaços e da luz do Tejo a desenhar por todo o lado a faiscante presença. Os temas atropelavam-se, a política não faltou logo sacudida como peçonha que não queríamos crescesse do lado do Corregedor. O sentimento que me assaltou e ficou, foi que todos envelhecemos um tanto. Esta malvada pandemia que nos isola e nos confina, trouxe consigo um anátema contra a vida tout court.   

         - Um pouco mais tarde encontrei-me com o Simão e juntos, saudosos dos livros, percorremos a Fnac. Simão diz-me então que continua a apreciar este blogue e sobremaneira os meus textos tocados de desespero, acrescentando que são muito bem escritos. Eu apetecia-me responder-lhe com a frase de George Sand a vida é “une longue blessure qui s´endort rarement et ne se guérit jamais”, mas outros assuntos surgem e neles nos demoramos até à entrada no metro: o Diário (integral) de Green, S. Paulo, Gide, Gabriel Matzneff. Às tantas, ante o seu ar admirado pela fluidez do que conto, recuo e digo-lhe que não pense que sou erudito, apenas um curioso e a curiosidade leva-me a todo o lado. Matzneff está em maus lençóis devido ao livro que uma ex-amante escreveu sobre a sua relação com ele quando tinha quinze anos, ele teria 35, portanto há mais de trinta anos, estando o julgamento marcado para Setembro deste ano. Acontece que o autor nunca escondeu as suas preferências por raparigas e rapazes imberbes e disso se alarga nos seus muitos diários. Não se percebe esta súbita revolta que se estende por todo o lado; muita desta gente aproveitou-se para subir na vida, gozou (espero que sim) e agora ainda acrescenta à conta bancária normalmente rapada, uma soma de números.  Matzneff, com 84 anos e uma reforma de 700 euros, sem editor (a Gallimard cortou-lhe a mensalidade e recolheu as edições), conseguiu que um único editor que mantém o anonimato, publicasse (em edição de autor) a resposta à senhora Vanessa Springora. Título: Vanessavirus (um achado!), 85 páginas, preço 600 euros. Voltarei a este assunto. Os moralistas merecem e as senhoras da emancipação feminina, também. 

O escritor multifacetado aos 84 anos 

         - Ausente deste diário para me consagrar aos trabalhos no campo. Com este tempo de céu azul como poucas vezes se vê, é de olhos postos nele que me vou exaurindo em estado de graça.