Sexta, 1 de Fevereiro.
Portugal
inteiro ouve uma espécie de murmúrio de águas paradas a atravessar o país há
muitos anos. Esse rumor é o barulho dos lábios raspando nódulos de indignação com
tudo o que diz respeito aos bombeiros nacionais comandados pelo senhor dez por
cento. A mim não surpreendeu o que os jornais trazem em parangonas esta manhã sobre
as refeições cobradas em quadruplicado ao Estado quando dos fogos de há dois
anos e de outros ao longo de muito tempo. São milhares de euros que entraram
directos no bolso não só de um como vários dos seus muitos dirigentes. Não é
por acaso que as direcções das diferentes corporações, exigem do Governo mais
verbas chorudas. As fraudes de refeições pagas para soldados que não estavam no
teatro de operações, é uma entre muitas outras. Entretanto, para que houvesse
dinheiro para encher os corruptos, muitas populações atingidas pelos incêndios
a norte e a sul, esperam desesperadas que lhes construam as casas.
- Nos Estados Unidos as temperaturas
desceram a 50 graus negativos, facto aproveitado por Trump para pedir aos
deuses que devolvam o calor que os cientistas dizem aquecer demasiado a Terra.
- Os nossos estimados enfermeiros
estão de novo em greve. Eu gostaria de saber quem suporta o “complemento
solidário” que tem vindo a multiplicar as muitas paralisações. Vai uma aposta?
A mim cheira-me que são os hospitais e clinicas particulares. Devia ser
obrigatório publicar de onde saem donativos tão expressivos como solidários... A
saúde, do meu ponto de vista, devia ter um estatuto diferente no tocante a este
direito não reconhecido nos sistemas ditatoriais. Com a saúde não se brinca.
Como já aqui manifestei, quem devia estar a bloquear o país, eram os africanos
e os pobres dos bairros de lata, os reformados e as crianças.
- Ontem, quando ia ao encontro dos
meus amigos, deparei com um senhor à moda antiga, recolhido do frio na
reentrância do metro Baixa-Chiado a vender o Avante. Fui ao seu encontro para
lhe comprar o jornal e disse-lhe que o fazia não pelas quatro folhas que ele
vendia, mas por ele. O homem levantou os grossos róis de sobrancelhas até ao
cimo da testa, surpreendido: “Por mim!” De facto, ele pertencia ao que resta da
velha guarda comunista e da doutrina que o informa – e isso por si só era digno
de admiração.
- A noite passada, já rente à manhã,
tive um sonho bizarro. Vi num quarto em desalinho um rapaz que se exibia, nu,
para uma câmara. Ele dançava, fazia gestos eróticos, ria-se. Em verdade, a cena
passava-se em Londres onde eu estava a estudar e havia alugado um quarto na
casa dos pais, ou lá o que eram, do rapaz. Ele não me via, eu olhava-o através
de uma máquina colocada na sua habitação para o corredor. Mais tarde, surgiu
outro amigo, pelos vinte e poucos, portanto, mais velho que ele que devia andar
pelos dezassete. Os dois trocavam beijos, tocavam-se sexualmente, o que veio
depois cheio de timidez, empurrava o mais novo recusando tocar-lhe no sexo e
assim. Pelo adiantado da noite, um velhote que eu quando aluguei o quarto
pensava ser seu avô, entrou na divisão, uma barriga de água imensa, tirou a
camisa, deitou as calças abaixo e tentou despertar o que estava definitivamente
adormecido. Os três riam como se estivessem numa festa de caloiros e nada do
que faziam fosse escabroso. Daí a uns minutos, já o velhote simpático tinha
desistido de dar vida ao que estava falecido, entra um homem de uns quarenta
anos que se pôs diante da câmara a dançar. Esse não despiu a camisa, mas
ergueu-a travando-a no peito com o queixo. O mais novo dos rapazes aproximou-se
e empurrou-o para o divã que entrava na objectica da máquina e pegou-lhe numa
mão forçando-o a tocar-lhe no seu sexo. O homem riu muito, mas não passou
disso. O que lhe interessava era desenhar através das calças a marca do pénis
erecto. Quase nesse momento entra uma rapariga que se pôs a observar aquele
grupo estranho de pessoas nuas em frente à câmara, mas só se ria sem ousar
entrar na cena. Nenhum dos presentes a convidou ou forçou e ela tendo-se
demorado um pouco abandonou a instalação. De repente, ouve-se uma gritaria
medonha. Eu vou ver o que se passava, deixando o meu posto de observação.
Avanço até ao fundo da casa, decorada com folhas de papel em forma de barcos,
bichos, cortinados, remoinhos, formando um labirinto incrível de cor e loucura
solta. Ao fundo havia um pátio e quando aí chego, uma mulher salta sobre mim
para me bater, dizendo que quem apresentou queixa na polícia contra o rapaz
atrevido, tinha sido eu. “Aquela é a forma que eles têm de ganhar a vida,
gritava. Nem todos têm o teu dinheiro para estudar e alugar um quarto na
cidade.” Fico furioso e digo-lhe que não sou nenhum bufo e não tenho nada a ver
com a maneira de ganhar a vida dos moços. Estou nisto, entram dois casais que
pareciam ciganos e põem-se a dizer que me matam. Fujo por entre as toneladas de
papel trabalhado que uma brisa vinda de fora agitava e me impedia de caminhar
com a presa que a aflição exigia. Quando estou à beira da saída, sai do quarto
o quarentão nu e tenta agarrar-me. Desembaraço-me dele com uma joelhada no
sítio que não tinha ainda de todo esmorecido. Estou de súbito na rua e vejo
passar um táxi. Arranco nele para a universidade e vou falar com o reitor a
quem conto a minha desventura. Ele, compreensivo, diz-me que daí em diante
tinha um quarto nos anexos da faculdade. Fico radiante e espero pela noite para
ir buscar os meus pertences. Pelas duas da manhã entro directo ao quarto que
fora o meu, mas mal entrei surge uma meia-dúzia de homens para me arrearem.
Quem vem defender-me é o rapaz que apenas tinha vestido uma T-shirt deixando ao
léu aquilo que tanta excitação causava aos seus espectadores. É ele que me
arrasta para fora, reúne na pequena mal livros e roupas, e vem trazer-ma à rua
onde eu estou paralisado de medo, escutando as ameaças e os impropérios das
mulheres e dos homens. À janela, assistindo a tudo com um sorriso simpático, está
o outro jovem. Este grita para o amigo: “John, anda pra dentro para não te
constipares.” No dia seguinte, fui à Polícia apresentar queixa, sem que antes
deixasse claro que não deviam revelar a minha morada. O agente concordou e eu
acordei aliviado.
- Ontem, no restaurante de cima do Corte Inglês, bons momentos
divertidos com a Marília e o João. Foi um longo passeio ao passado, trazendo na
enxurrada das recordações um tempo perdido lá para trás, na fronteira entre a
vida e a morte, entre os fantasmas e as sombras tristes da inconformidade do
presente. É por estas e muitas outras que eu não sou dado a pensar no que
passou.
- Em compensação, esta manhã no Café
da Casa, demorada e vibrante conversa com o António acerca dos textos bíblicos.
António diz-me que prefere a Bíblica hebraica, acha-a mais poética, mais
corrente na tradução dos jesuítas. Eu sou pela Septuaginta e Vulgata. Tive pena
não ter à mão estas traduções, para comparar textos, expressões e linguagem.
Ele não aprecia muito a tradução de Frederico Lourenço, acha-a seca, sem aquela
beleza que a Latina oferece. Eu, pelo contrário, prefiro o texto grego vertido
para o português por alguém que não é crente nem está ligado a nenhuma
religião. Depois, é bom não esquecermos, que o texto grego na sua dureza e rugosidade,
era a língua que falavam os soldados e o povo de Alexandre. Antes havia
terminado a revisão do treceiro capítulo de O
Juiz Apostolatos.