sexta-feira, fevereiro 01, 2019

Sexta, 1 de Fevereiro.
Portugal inteiro ouve uma espécie de murmúrio de águas paradas a atravessar o país há muitos anos. Esse rumor é o barulho dos lábios raspando nódulos de indignação com tudo o que diz respeito aos bombeiros nacionais comandados pelo senhor dez por cento. A mim não surpreendeu o que os jornais trazem em parangonas esta manhã sobre as refeições cobradas em quadruplicado ao Estado quando dos fogos de há dois anos e de outros ao longo de muito tempo. São milhares de euros que entraram directos no bolso não só de um como vários dos seus muitos dirigentes. Não é por acaso que as direcções das diferentes corporações, exigem do Governo mais verbas chorudas. As fraudes de refeições pagas para soldados que não estavam no teatro de operações, é uma entre muitas outras. Entretanto, para que houvesse dinheiro para encher os corruptos, muitas populações atingidas pelos incêndios a norte e a sul, esperam desesperadas que lhes construam as casas. 

         - Nos Estados Unidos as temperaturas desceram a 50 graus negativos, facto aproveitado por Trump para pedir aos deuses que devolvam o calor que os cientistas dizem aquecer demasiado a Terra.   

         - Os nossos estimados enfermeiros estão de novo em greve. Eu gostaria de saber quem suporta o “complemento solidário” que tem vindo a multiplicar as muitas paralisações. Vai uma aposta? A mim cheira-me que são os hospitais e clinicas particulares. Devia ser obrigatório publicar de onde saem donativos tão expressivos como solidários... A saúde, do meu ponto de vista, devia ter um estatuto diferente no tocante a este direito não reconhecido nos sistemas ditatoriais. Com a saúde não se brinca. Como já aqui manifestei, quem devia estar a bloquear o país, eram os africanos e os pobres dos bairros de lata, os reformados e as crianças.

         - Ontem, quando ia ao encontro dos meus amigos, deparei com um senhor à moda antiga, recolhido do frio na reentrância do metro Baixa-Chiado a vender o Avante. Fui ao seu encontro para lhe comprar o jornal e disse-lhe que o fazia não pelas quatro folhas que ele vendia, mas por ele. O homem levantou os grossos róis de sobrancelhas até ao cimo da testa, surpreendido: “Por mim!” De facto, ele pertencia ao que resta da velha guarda comunista e da doutrina que o informa – e isso por si só era digno de admiração.

         - A noite passada, já rente à manhã, tive um sonho bizarro. Vi num quarto em desalinho um rapaz que se exibia, nu, para uma câmara. Ele dançava, fazia gestos eróticos, ria-se. Em verdade, a cena passava-se em Londres onde eu estava a estudar e havia alugado um quarto na casa dos pais, ou lá o que eram, do rapaz. Ele não me via, eu olhava-o através de uma máquina colocada na sua habitação para o corredor. Mais tarde, surgiu outro amigo, pelos vinte e poucos, portanto, mais velho que ele que devia andar pelos dezassete. Os dois trocavam beijos, tocavam-se sexualmente, o que veio depois cheio de timidez, empurrava o mais novo recusando tocar-lhe no sexo e assim. Pelo adiantado da noite, um velhote que eu quando aluguei o quarto pensava ser seu avô, entrou na divisão, uma barriga de água imensa, tirou a camisa, deitou as calças abaixo e tentou despertar o que estava definitivamente adormecido. Os três riam como se estivessem numa festa de caloiros e nada do que faziam fosse escabroso. Daí a uns minutos, já o velhote simpático tinha desistido de dar vida ao que estava falecido, entra um homem de uns quarenta anos que se pôs diante da câmara a dançar. Esse não despiu a camisa, mas ergueu-a travando-a no peito com o queixo. O mais novo dos rapazes aproximou-se e empurrou-o para o divã que entrava na objectica da máquina e pegou-lhe numa mão forçando-o a tocar-lhe no seu sexo. O homem riu muito, mas não passou disso. O que lhe interessava era desenhar através das calças a marca do pénis erecto. Quase nesse momento entra uma rapariga que se pôs a observar aquele grupo estranho de pessoas nuas em frente à câmara, mas só se ria sem ousar entrar na cena. Nenhum dos presentes a convidou ou forçou e ela tendo-se demorado um pouco abandonou a instalação. De repente, ouve-se uma gritaria medonha. Eu vou ver o que se passava, deixando o meu posto de observação. Avanço até ao fundo da casa, decorada com folhas de papel em forma de barcos, bichos, cortinados, remoinhos, formando um labirinto incrível de cor e loucura solta. Ao fundo havia um pátio e quando aí chego, uma mulher salta sobre mim para me bater, dizendo que quem apresentou queixa na polícia contra o rapaz atrevido, tinha sido eu. “Aquela é a forma que eles têm de ganhar a vida, gritava. Nem todos têm o teu dinheiro para estudar e alugar um quarto na cidade.” Fico furioso e digo-lhe que não sou nenhum bufo e não tenho nada a ver com a maneira de ganhar a vida dos moços. Estou nisto, entram dois casais que pareciam ciganos e põem-se a dizer que me matam. Fujo por entre as toneladas de papel trabalhado que uma brisa vinda de fora agitava e me impedia de caminhar com a presa que a aflição exigia. Quando estou à beira da saída, sai do quarto o quarentão nu e tenta agarrar-me. Desembaraço-me dele com uma joelhada no sítio que não tinha ainda de todo esmorecido. Estou de súbito na rua e vejo passar um táxi. Arranco nele para a universidade e vou falar com o reitor a quem conto a minha desventura. Ele, compreensivo, diz-me que daí em diante tinha um quarto nos anexos da faculdade. Fico radiante e espero pela noite para ir buscar os meus pertences. Pelas duas da manhã entro directo ao quarto que fora o meu, mas mal entrei surge uma meia-dúzia de homens para me arrearem. Quem vem defender-me é o rapaz que apenas tinha vestido uma T-shirt deixando ao léu aquilo que tanta excitação causava aos seus espectadores. É ele que me arrasta para fora, reúne na pequena mal livros e roupas, e vem trazer-ma à rua onde eu estou paralisado de medo, escutando as ameaças e os impropérios das mulheres e dos homens. À janela, assistindo a tudo com um sorriso simpático, está o outro jovem. Este grita para o amigo: “John, anda pra dentro para não te constipares.” No dia seguinte, fui à Polícia apresentar queixa, sem que antes deixasse claro que não deviam revelar a minha morada. O agente concordou e eu acordei aliviado.

         - Ontem, no restaurante de cima do Corte Inglês, bons momentos divertidos com a Marília e o João. Foi um longo passeio ao passado, trazendo na enxurrada das recordações um tempo perdido lá para trás, na fronteira entre a vida e a morte, entre os fantasmas e as sombras tristes da inconformidade do presente. É por estas e muitas outras que eu não sou dado a pensar no que passou.


         - Em compensação, esta manhã no Café da Casa, demorada e vibrante conversa com o António acerca dos textos bíblicos. António diz-me que prefere a Bíblica hebraica, acha-a mais poética, mais corrente na tradução dos jesuítas. Eu sou pela Septuaginta e Vulgata. Tive pena não ter à mão estas traduções, para comparar textos, expressões e linguagem. Ele não aprecia muito a tradução de Frederico Lourenço, acha-a seca, sem aquela beleza que a Latina oferece. Eu, pelo contrário, prefiro o texto grego vertido para o português por alguém que não é crente nem está ligado a nenhuma religião. Depois, é bom não esquecermos, que o texto grego na sua dureza e rugosidade, era a língua que falavam os soldados e o povo de Alexandre. Antes havia terminado a revisão do treceiro capítulo de O Juiz Apostolatos.