quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Quinta, 14.
Função Pública em greve dita geral. Que maravilha! Num país rico, equilibrado, ao abrigo da República que nos une num mesmo afecto e igualdade! Pena que as crianças, os velhos, os dois milhões de pobres não tenham uma qualquer central social que os apoie numa greve contra o desespero e a indignidade em que vegetam. Não vou dizer que os funcionários ganham bem. Penso na turba de amanuenses, de trabalhadores de última linha e assim, quando comparados com os chefes e directores, que auferem salários escandalosos para gerir empresas do Estado falidas, à custa do contribuinte carregado todos os anos de mais impostos. O parasitismo na Função Pública é mais que muito, abrigado à sombra do emprego para a vida, portanto, gerido com o tempo mansarrão que leva uma folha de papel a passar de uma secção a outra. Para não falar na gestão autárquica, verdadeira manta que alberga o compadrio, a cunha, os interesses pessoais. A função pública no nosso infeliz país, é a maneira que os governos encontraram para baixar o índice de desemprego e a forma de terem pessoas humildes, temerosas e obedientes, treinadas para debitar invariavelmente a mesma frase: “É a lei, está na lei.”   

         - Ainda a propósito do que aí vai com o corte dos privados à ADSE. O que me espanta, é a facilidade que as empresas privadas têm em romper os contratos que assinaram com o Estado e o inverso é sempre uma complicação, uma luta em tribunal, um prejuízo para os contribuintes. De quem será a culpa, pergunta ingénua de um leigo atento. 

         - Antes de deixar Lisboa a caminho de Cracóvia, encontrei no percurso até à Capela do Senhor do Bonfim, uma freira que vendo o meu trote se me dirigiu: “Olhe, fizeram-me uma palmilha de gel que ficou demasiado alta; se quiser bata à porta da Casa de Santa Ana que eu ofereço-lha. Calha bem, disse eu, porque esta que uso tem pouca espessura.” O tempo passou, eu sempre afogueado de afazeres, até que hoje fui a Setúbal comprar um tinteiro para a impressora. Acontece que perto vi a casa baixa pintada de amarelo que a freira me havia descrito. Fui lá. A porta larga estava aberta e entrei por ali a dentro sem pedir licença. Um grupo de mulheres entradotes estava em conversa na recepção. Uma delas avançou para mim, decidida. Disse ao que vinha, quando do conjunto se destaca aquela que me levara ao convento. Não a reconheci porque nenhuma delas usava o hábito da padroeira, a que deparei na missa assim como uma ou outra, tinha o cabelo ralo pintado com produtos de má qualidade. “Fui eu. Espere que vou à enfermaria buscar a palmilha.” Quando ela me entregou o objecto, perguntei-lhe se tinham na Casa um pomar. Ela estranhou e eu expliquei que era meu desejo trazer-lhe um saco de laranjas. “Para pagar isso! adianta-se aquela que parecia a madre superiora. Temos tantas laranjas, nem faz ideia! Reze um padre-nosso a Deus por nós. – Ele não me ouve – repliquei. Sou um grande pecador. – Ora, Deus ouve toda a gente!” Logo me lembrei do meu querido amigo Julien Green que algures no seu Diário diz qualquer coisa semelhante, mas bem mais profunda: “Deus tem uma especial atracção pelos pecadores.”


         - Falando de Green. Sempre certeiro o escritor escreve no seu livro póstumo: “... l´ennui s´occupait des mouvements boursiers d´entreprises multinationales. Il s´agissait de millions qui voguaient d´une capital a l´autre selon les lois fascinantes de l´immoralité”. L´inconnu, pag. 34, Fayard.