Quinta, 14.
Função Pública em greve dita geral. Que maravilha! Num país rico, equilibrado, ao
abrigo da República que nos une num mesmo afecto e igualdade! Pena que as
crianças, os velhos, os dois milhões de pobres não tenham uma qualquer central
social que os apoie numa greve contra o desespero e a indignidade em que
vegetam. Não vou dizer que os funcionários ganham bem. Penso na turba de
amanuenses, de trabalhadores de última linha e assim, quando comparados com os
chefes e directores, que auferem salários escandalosos para gerir empresas do
Estado falidas, à custa do contribuinte carregado todos os anos de mais
impostos. O parasitismo na Função Pública é mais que muito, abrigado à sombra
do emprego para a vida, portanto, gerido com o tempo mansarrão que leva uma
folha de papel a passar de uma secção a outra. Para não falar na gestão
autárquica, verdadeira manta que alberga o compadrio, a cunha, os interesses
pessoais. A função pública no nosso infeliz país, é a maneira que os governos
encontraram para baixar o índice de desemprego e a forma de terem pessoas
humildes, temerosas e obedientes, treinadas para debitar invariavelmente a
mesma frase: “É a lei, está na lei.”
- Ainda a propósito do que aí vai com
o corte dos privados à ADSE. O que me espanta, é a facilidade que as empresas
privadas têm em romper os contratos que assinaram com o Estado e o inverso
é sempre uma complicação, uma luta em tribunal, um prejuízo para os
contribuintes. De quem será a culpa, pergunta ingénua de um leigo atento.
- Antes de deixar Lisboa a caminho de
Cracóvia, encontrei no percurso até à Capela do Senhor do Bonfim, uma freira
que vendo o meu trote se me dirigiu: “Olhe, fizeram-me uma palmilha de gel que
ficou demasiado alta; se quiser bata à porta da Casa de Santa Ana que eu
ofereço-lha. Calha bem, disse eu, porque esta que uso tem pouca espessura.” O
tempo passou, eu sempre afogueado de afazeres, até que hoje fui a Setúbal
comprar um tinteiro para a impressora. Acontece que perto vi a casa baixa
pintada de amarelo que a freira me havia descrito. Fui lá. A porta larga estava
aberta e entrei por ali a dentro sem pedir licença. Um grupo de mulheres
entradotes estava em conversa na recepção. Uma delas avançou para mim,
decidida. Disse ao que vinha, quando do conjunto se destaca aquela que me
levara ao convento. Não a reconheci porque nenhuma delas usava o hábito da
padroeira, a que deparei na missa assim como uma ou outra, tinha o cabelo ralo
pintado com produtos de má qualidade. “Fui eu. Espere que vou à enfermaria
buscar a palmilha.” Quando ela me entregou o objecto, perguntei-lhe se tinham
na Casa um pomar. Ela estranhou e eu expliquei que era meu desejo trazer-lhe um
saco de laranjas. “Para pagar isso! adianta-se aquela que parecia a madre
superiora. Temos tantas laranjas, nem faz ideia! Reze um padre-nosso a Deus por
nós. – Ele não me ouve – repliquei. Sou um grande pecador. – Ora, Deus ouve
toda a gente!” Logo me lembrei do meu querido amigo Julien Green que algures no
seu Diário diz qualquer coisa semelhante, mas bem mais profunda: “Deus tem uma
especial atracção pelos pecadores.”
- Falando de Green. Sempre certeiro o
escritor escreve no seu livro póstumo: “... l´ennui s´occupait des mouvements
boursiers d´entreprises multinationales. Il s´agissait de millions qui
voguaient d´une capital a l´autre selon les lois fascinantes de l´immoralité”. L´inconnu, pag. 34, Fayard.