Segunda, 18.
Com
João B. (querido amigo de longa data, arquitecto, que desenhou esta casa que
tanto frisson causa a quem aqui vem,
e já aparece no meu Diário publicado em 1994, com o título Nas Margens da Inquietação, e desde então quando lhe li as partes
que lhe diziam respeito não alterou uma vírgula, limitando-se a pedir-me que suprimisse
o apelido) com o João B. pois e um seu amigo, fui ver o filme de Yorgos
Lanthimos A Favorita. A obra narra uma
época alvoraçada na Grã-Bretanha do século XVIII, no curto período do reinado da
Rainha Anne (1702-1714), quando o conflito com a França estava ao rubro e as personagens
em presença durante a Sucessão Espanhola se digladiavam ferozmente, a tal ponto
que ainda hoje são palpitantes os vestígios da inimizade dos britânicos para com os
franceses. A Rainha Anne (Olivia Colman), fechada no seu castelo, prisioneira
das suas obsessões sexuais, materializadas numa mulher (Rackel Weisz) no papel
de Lady Sarah que praticamente é quem dirige os destinos do país devido à ascendência
amorosa sobre a soberana, que vive num mundo paralelo, cheio de cio, loucura,
violência, sadismo, sexo submisso, espécie de bordel aristocrático que segue a
par com a escravidão humana, a dominação, o poder e a irracionalidade deste
quando exercido sob caprichos doentios, humores repentinos, desumanidade e
egocentrismo. Até à chegada de Abigauil (Emma Stine), mulher loira, bonita,
inteligente, por quem Anne se apaixona redondamente, indo ao ponto de expulsar
do palácio a primeira amante que, portanto, era mais sádica, mais esperta nas
cenas perversas que a monarca tanto apreciava e dependia. O duelo entre as duas
rivais, vai ser cruel pela posse daquele corpo horrível, daquela mascara de
terror, debaixo do qual sobrevive uma nação inteira, com a riqueza e o poder que
espezinha tudo e todos. O plano final é impressionante: a sádico-masoquista
está a ser masturbada pela segunda amante e esvai-se lentamente num mundo
onírico, psicadélico em certo sentido, onde tudo se mistura numa profusão de
imagens que só um realizador de talento e cultura pode elaborar e a que a
música quase nula ao longo do filme, aporta toda a magia e sublimidade inscrita
em toda a obra, mas ali resumida na crosta sensível de um curto reinado de
pavor. Notabilíssimo o desempenho de Olivia Coman, seguido de Rackel Weisz e um
pouco mais distante de Emma Stine.
- O João B. não o via há alguns anos.
Disse-me que está a fazer 80 anos! Contudo, à parte o cabelo branco e ter
engordado um pouco, está intacto: o mesmo sorriso, a mesma classe, a mesma
elegância, o mesmo humor, tom de voz, utilização do vocabulário onde aflora uma
ponta de juventude retida nos anos que não passaram por ele. Tal como me
aconteceu com António Borges Coelho, a amizade não se despede assim sem mais,
parecendo que o tempo estacionou algures numa galáxia de emoções e sentimentos,
partilhas comuns e segredos, pronto a reatar a marcha como se nos tivéssemos
despedido na véspera. O hiato eclipsa-se como por mistério.
- Regressei a casa já a noite se
disseminava pela cidade. Quando deixei o Corte Inglês, doente da nostalgia de
outros tempos, outros domingos, que eu julgava perdidos para a memória de um
período minúsculo enchido da presença protectora de Marcelo Caetano, vi no afago
da multidão que acudia aos cinemas, se atropelava em filas medonhas nas
bilheteiras, a repetição de uma época circunscrita a um modo de viver onde os
pequenos nadas eram vividos como sacrossantos. Havia naquela gente uma alegria,
como se o facto de ir ao cinema fosse o resultado de um estado épico arrancado
à monotonia das suas vidas e às saudades dos dias mergulhados no sossego de
quem não teme o dia seguinte e essas duas horas diante do ecrã resumissem a
semana pacata que merecia aquela folga – como dizer – radical. Quem se desse ao
trabalho de fotografar a aglomeração de espectadores hoje, veria que não
passaram cinquenta anos, pois tudo nas expressões, no modo de vestir, de estar,
no frisson stupéfiante que movimentava todos os que ali estavam, traduzia
rigorosamente a mesma atmosfera de há cinquenta, sessenta anos.