segunda-feira, fevereiro 18, 2019

Segunda, 18.
Com João B. (querido amigo de longa data, arquitecto, que desenhou esta casa que tanto frisson causa a quem aqui vem, e já aparece no meu Diário publicado em 1994, com o título Nas Margens da Inquietação, e desde então quando lhe li as partes que lhe diziam respeito não alterou uma vírgula, limitando-se a pedir-me que suprimisse o apelido) com o João B. pois e um seu amigo, fui ver o filme de Yorgos Lanthimos A Favorita. A obra narra uma época alvoraçada na Grã-Bretanha do século XVIII, no curto período do reinado da Rainha Anne (1702-1714), quando o conflito com a França estava ao rubro e as personagens em presença durante a Sucessão Espanhola se digladiavam ferozmente, a tal ponto que ainda hoje são palpitantes os vestígios da inimizade dos britânicos para com os franceses. A Rainha Anne (Olivia Colman), fechada no seu castelo, prisioneira das suas obsessões sexuais, materializadas numa mulher (Rackel Weisz) no papel de Lady Sarah que praticamente é quem dirige os destinos do país devido à ascendência amorosa sobre a soberana, que vive num mundo paralelo, cheio de cio, loucura, violência, sadismo, sexo submisso, espécie de bordel aristocrático que segue a par com a escravidão humana, a dominação, o poder e a irracionalidade deste quando exercido sob caprichos doentios, humores repentinos, desumanidade e egocentrismo. Até à chegada de Abigauil (Emma Stine), mulher loira, bonita, inteligente, por quem Anne se apaixona redondamente, indo ao ponto de expulsar do palácio a primeira amante que, portanto, era mais sádica, mais esperta nas cenas perversas que a monarca tanto apreciava e dependia. O duelo entre as duas rivais, vai ser cruel pela posse daquele corpo horrível, daquela mascara de terror, debaixo do qual sobrevive uma nação inteira, com a riqueza e o poder que espezinha tudo e todos. O plano final é impressionante: a sádico-masoquista está a ser masturbada pela segunda amante e esvai-se lentamente num mundo onírico, psicadélico em certo sentido, onde tudo se mistura numa profusão de imagens que só um realizador de talento e cultura pode elaborar e a que a música quase nula ao longo do filme, aporta toda a magia e sublimidade inscrita em toda a obra, mas ali resumida na crosta sensível de um curto reinado de pavor. Notabilíssimo o desempenho de Olivia Coman, seguido de Rackel Weisz e um pouco mais distante de Emma Stine.

         - O João B. não o via há alguns anos. Disse-me que está a fazer 80 anos! Contudo, à parte o cabelo branco e ter engordado um pouco, está intacto: o mesmo sorriso, a mesma classe, a mesma elegância, o mesmo humor, tom de voz, utilização do vocabulário onde aflora uma ponta de juventude retida nos anos que não passaram por ele. Tal como me aconteceu com António Borges Coelho, a amizade não se despede assim sem mais, parecendo que o tempo estacionou algures numa galáxia de emoções e sentimentos, partilhas comuns e segredos, pronto a reatar a marcha como se nos tivéssemos despedido na véspera. O hiato eclipsa-se como por mistério.


         - Regressei a casa já a noite se disseminava pela cidade. Quando deixei o Corte Inglês, doente da nostalgia de outros tempos, outros domingos, que eu julgava perdidos para a memória de um período minúsculo enchido da presença protectora de Marcelo Caetano, vi no afago da multidão que acudia aos cinemas, se atropelava em filas medonhas nas bilheteiras, a repetição de uma época circunscrita a um modo de viver onde os pequenos nadas eram vividos como sacrossantos. Havia naquela gente uma alegria, como se o facto de ir ao cinema fosse o resultado de um estado épico arrancado à monotonia das suas vidas e às saudades dos dias mergulhados no sossego de quem não teme o dia seguinte e essas duas horas diante do ecrã resumissem a semana pacata que merecia aquela folga – como dizer – radical. Quem se desse ao trabalho de fotografar a aglomeração de espectadores hoje, veria que não passaram cinquenta anos, pois tudo nas expressões, no modo de vestir, de estar, no frisson stupéfiante que movimentava todos os que ali estavam, traduzia rigorosamente a mesma atmosfera de há cinquenta, sessenta anos.