Sábado, 1 de Dezembro.
O
avião da Air France que me trouxe de volta, era um colosso com asas. Comigo
deviam ir umas cem pessoas. Pensava espreitando para a pista no momento da
descolagem, como o homem engenheiro de tantas coisas extraordinárias, pode ao
lado praticar e criar outras de uma monstruosidade absoluta. O mesmo homem, com
o mesmo coração, inteligência, sensibilidade, cava a sua morte e a do seu
semelhante, desprezando o enorme vazio que cada ser humano provoca ao
desaparecer.
- Recentremos os dias no quotidiano de
um país circunscrito a coisinhas miúdas, a temas de lana-caprina, esmiuçados em
torno do futebol, da baixa política, dos ódios de estimação, da inveja, da
mentira cristã, da avareza, da família enquanto núcleo de consumo e organização
de padrões comunitários individualistas e preconceituosos. Estive mês e meio
fora deste rectângulo à beira-mar plantado, sem ler em português, falar – salvo
alguns minutos com um ou outro amigo ao telefone -, trancado na língua de Molière,
lendo, cavaqueando e pensando em francês, numa cidade vibrante que nos abraça
todos os dias convidando-nos à originalidade e à revolta. O contraste com este
mundo que forçosamente tenho de me entender, é de tal modo violento que
necessito de dias para vestir a carapaça da submissão que caracteriza o povo de
onde provenho. Dito isto, enquanto país, prefiro-o a quase todos os da Europa
central, incluindo a França. Se tivesse que realçar o que profundamente detesto
na minha raça, diria a falta de nervos, o rebaixamento, o rosnar para dentro, a
acomodação, o deixar que os políticos governem como se dez milhões de pessoas
fossem os escravos que têm à disposição.
- Depois... depois vem as ruas
encharcadas de sol, a casa que a Piedade com esforço asseou, o cheiro dos
livros, da cera, o silêncio a apalpar muros e espaços verdes, o desfazer da
mala, a dúzia de volumes colocada sobre a mesa resplandecente, o olhar a
perder-se sobre o campo húmido de muita chuva, a vista larga e vasta em redor
limpa dos eucaliptos, o Inverno deitado nos folhos da terra, a noite estrelada
vista do quarto onde um Ecce Homo me protege, o sono profundo abrigado dos
pesadelos que crescem em cachão sobre a Terra regada de sangue, suor e lágrimas...
- ... e amanhã sendo outro dia, o
regresso à escrita, a revisão do romance, as horas de manta nos joelhos a
entrelaçar palavras, a construir mundos, a despejar sobre a folha em branco do
computador as ideias que se acumulam, os gritos contidos nos filamentos do
coração, alinhando substantivos e adjectivos, como o croché feito manta que cobre
a realidade e se recusa a revelar na penumbra dos dias os segredos que só conta
às noites sem sono...