segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Segunda, 19.
Ontem, acordei obcecado com o romance. Saí de casa muito cedo com a intenção de ir à missa das nove horas. Passei em frente à minha capela habitual, no centro de Setúbal, e segui em frente até à Luísa Todi, o remorso a roer-me a consciência. Entrei no Café da Casa que tinha acabado de abrir e sentei-me à mesa grande da entrada, onde estive até perto da uma hora da tarde quando o café-restaurante começou a encher e o barulho se tornou insuportável. O diabo tentou-me, congratulado num riso alarve pela falha que fora a minha, e empurrou-me durante as horas de trabalho para os braços da facilidade e até de um ligeiro júbilo. Talvez nada do que escrevi figurará em imortalidade nas páginas de O Juiz Apostolatos. O diabo que se adianta muitas vezes a Deus, deve saber que o final do romance não lhe diz respeito.

         - No sábado, respondendo a um convite do Paulo para que arrastei o João, assisti no Martinho da Arcádia à interpretação do poema de Álvaro Campos, Ode Marítima, dito pela actriz grega Marissa Triandafilídou (versão grega) e João Garcia Miguel (versão portuguesa). Iniciativa do Prof. Rui Barbosa e da Associação Cultural Luso-Grega Parafonia. Interpretação no oposto do poema de Pessoa que trata de uma viagem idealizada, espécie do sonho como fuga, ida aos limites de nós próprios no rasgado mundo, por mares e portos e despedidas e chegadas a que Fernando Pessoa imprimiu um cunho bem português e que Garcia Miguel bem declamou com texturas polifónicas muito bem conseguidas. Eu percebi o desempenho da excelente actriz grega, mas talvez a sua leitura tivesse um cunho exagerado de huis-clos sartriano, na acepção do eu enquanto espaço de intrusão da realidade circundante. Ou talvez fosse a imagem que não mostrou a dramaturgia que a actriz com talento nos queria dar a ver. Fosse como fosse, no final o prof. Rui Barbosa interpelou-me e logo ali nasceu um diálogo sobre o poeta do Orfeu de que julgo não ter proferido muitos disparates, e que exemplifiquei com poemas ditos de cor e registos literários enquadrados com a vida solitária do nosso génio das letras e da geração da Presença. (À parte, perguntei à assembleia na maioria grega, o que pensava da tradução do grego (Septuaginta) de Frederico Lourenço. Ninguém sabia quem era o nosso helenista. Bem sei que o grego clássico nada tem a ver com o grego de hoje, mas quand même.) 


         - Falando de Fernando Pessoa. Existem três volumes da poesia ortónima, no total de 1837 páginas, publicados pela Assírio & Alvim, que a Manuela Pereira da Silva me ofereceu há uns anos e dos quais ela é coo-autora com Ana Maria Freitas e Madalena Dine de uma importância absolutamente essencial para o estudo e conhecimento do Poeta. Temo que este trabalho seja conhecido apenas nos meios académicos, dado que através deles percebemos quanto a obra de Pessoa é vastíssima fora dos livros impressos: Heterónimos e Mensagem. São centenas para não dizer milhares de poemas que revisito a miúde e descubro o outro Pessoa disseminado por publicações ou esquecido no fundo do célebre baú.