terça-feira, fevereiro 06, 2024

Terça, 6.

Retomemos a vida depois de um interregno infeliz. De sexta para sábado, pelas quatro da madrugada, acordei alagado de sangue. Pânico, surpresa, estupefacção. Como fazer parar as golfadas que saíam do meu nariz tingindo de vermelho o travesseiro! Tendo a casa de banho no quarto, foi enchendo as conchas das mãos do que caía da narina direita que alcancei o lavatório. Misteriosamente calmo depois do embate inicial. Por sorte tinha um maço de algodão e foi com ele que consegui estancar o terror. Depois desci ao salão para medir a tensão, e sem surpresa li no mostrador: 22,1-11,2. Era o que eu supunha. Voltei a deitar-me e adormeci ligeiramente por um bocado. Acordo às seis de novo a sangrar, mas em dose reduzida. Experimento telefonar ao 24 24, mas não sei como fazer nunca tendo tido necessidade. Tento acalmar-me agora que sinto o enervamento a crescer. Vou a Internet e obtenho a informação. Ligo. Do outro pedem o nome e o número que dizem vir nas costas do Cartão de Utente. No meu sendo antigo, não existe nada. Volto à cozinha para substituir os tampões. De regresso, ensaio de novo, mas desta vez digito o número da Segurança Social que vem no cartão. Milagre. Atende-me uma voz de adolescente de uma simpatia excepcional a quem eu explico ao que venho. Ele recomenda-me calma e eu aceito. Explico tudo o aconteceu e o que estou a sentir naquele instante. “Eu tenho todo o tempo. Se tiver aparelho para medir a tensão, faça-o agora, eu espero.” “23,2; 12,6.” Vamos esperar um pouco para tornar a tentar. O resultado foi o mesmo. Então ele diz que vai passar a um colega. Fico triste de repente. Gostei daquela voz serena, daquele contacto que me iluminou aquele instante de trevas, daquela voz jovem que vibrou dentro de mim impulsionando–me a viver. Vou chorar.  Nesse momento ouço as palavras de homem feito, sábio, disposto também ele a ajudar-me. Quer a minha morada e diz que vai mandar uma ambulância. Respondo que não o faça porque vivo isolado, só, por vontade própria e é difícil alguém dar com a casa. Quero simplesmente saber o que devo fazer numa situação daquelas. “Vou mandar uma ambulância, não se preocupe que ela vai dar consigo”, diz-me, seguro. “Fique calmo e espere, vamos dar o número do seu portátil e se eles tiverem dificuldade, telefonam-lhe.” Estou sem palavras, o raciocínio não avança. Contudo, ainda lhe digo que tenho o portão fechado, mas ele não se demove. Não teriam passado 15 minutos e ouço o telemóvel. “Estamos aqui, mas não sabemos qual dos portões é, pode vir cá abaixo?” “Vou tentar, se não cair, tenho tonturas.” Saio. Eles estão ao meu portão, vejo-os através do que me resta de discernimento. Nem quero acreditar, tendo em conta o que ouço dizer do sistema. A rapariga (uma romena) pega-me pelo braço e conduz-me de novo a casa onde me arranjo para partir. Regresso à ambulância recusando deitar-me, quero ir ao lado dela, o rapaz a conduzir. A caminho do hospital de Setúbal, ela pergunta-me se sou poeta. Espanto meu. Digo-lhe quando muito romancista. “Você tem ar de poeta, parece um anjo.” Sorri. Não posso fazer outra coisa. Foi desse modo que ela me apresenta ao rapaz que estava na recepção do hospital a fazer a triagem. Fita amarela, pouco ou nenhuma gente. “Hoje aqui parece o céu”, diria mais tarde uma enfermeira. Vou esperar numa sala de poucas dimensões onde estão um médico africano, um ucraniano e uma portuguesa de nome Ana, nas urgências. Entro em pleno fascismo, a sombra hedionda de Salazar está ali omnipresente. Na sala estão e vão chegando doentes em macas, em cadeiras de rodas, elas em camisa de dormir, outros esfarrapados e de chinelos nos pés, falando em altos berros ao telemóvel, enquanto os médicos se trancam nos consultórios e aí ficam tempos esquecidos, sós. Alguns doentes são habitués diários, vê-se familiaridade entre eles e com os clínicos, a miséria e a demência coabitam e a chamada às consultas não avança. A quietude de quando cheguei, está transformada numa algazarra medonha que os bombeiros perfumam encostados às paredes e aos carros à entrada com os seus cigarros. Sinto invadir-me de uma profunda tristeza. Ser pobre e ainda por cima ignorante é anátema impossível de aceitar 50 anos depois do 25 de Abril. Quatro horas depois a ver a pobreza dos recursos médicos, dos doentes miseráveis, das condições mínimas que nada curam e só pioram, debandei. Pedi um táxi na recepção e rumei ao hospital da Luz do outro lado da cidade. Em cinco minutos tinha passado pela triagem, em dez estava diante de um médico com uns sessenta anos, que me mediu a tensão depois de ter ouvido o relato do doente até ali. Escutou sem emitir uma palavra, como se a ladainha lhe fosse familiar. 17, 4 – 8,2. Um pouco melhor. Dá-me um comprimido de longa eficácia e diz-me que vá vigiando a tensão. Pede-me que aguarde mais uns minutos na sala de espera. Assim aconteceu. Quando voltei a pressão arterial tinha baixado um pouco mais. Pergunto-lhe se não me dá nada para o problema, diz-me que não é preciso porque “isso foi um pico de tensão que deve ser vigiado”. Insisto que quero o comprimido que antigamente era dos velhinhos. Sorriu e passa-me a receita, acrescentando: “não o tome já. Vá vigiando e se a tensão crescer, então, sim”. Meia hora depois de ter entrado na unidade hospitalar, partia num táxi rumo a casa. À chegada: 13,6 - 7,8. Acontece que no dia seguinte, domingo, mal acordei, tinha um borrão de sangue na almofada. E no entanto havia dormido oito horas seguidas e profundamente. Foi então que decidi começar a tomar a droga.