domingo, fevereiro 11, 2024

Domingo, 11.

Prossigo como ensaio aos voos no romance cujo apelo não cessa de me atrair. Ainda que saiba que a tensão irá subir dois ou três pontos, é-me imprescindível fazer passar a minha existência por essas linhas salvadoras. Não me basta ler, preciso de materializar o pensamento na tradução que compõe a frase e define a sagração do acto de escrever. 

         - Assim, não consigo varrer do meu cérebro àquela voz de adolescente que me acudiu ao primeiro apelo para a Saúde 24 24. Ela sacudiu-me interior e exteriormente, dando-me coragem a não desistir de viver conforme os meus íntimos desejos, amparado ao silêncio, ao murmúrio do vento, da chuva, do diálogo das estrelas à noite, a beleza e arte por companhia, a voz dos deuses como chamamento ao deserto imenso onde estou de braços abertos ao mistério dos instantes que se acorrentam ao meu coração. Por perto está sempre o meu Criador. De outro modo, como foi possível que o segundo interlocutor, mais maduro e decerto experiente, me tivesse dito: “Tenha calma, nós vamos descobri-lo, eu não o abandono.” E depois, neste deserto sem nome de rua, sem número de porta, onde quase ninguém vive e eu me sinto no céu, depois de eu insistir em dar-lhe os parâmetros para GPS e ele os ter recusado, como foi possível que quinze minutos depois tivesse uma ambulância à minha porta. Quando o portátil tocou e eu sou chamado a abrir o portão, respondi à rapariga que não sabia se conseguiria andar até lá porque tinha a cabeça transtornada. Vou, todavia. Mal chego às grades, ela segura-me pelo braço, ajuda-me a rodar a chave e vem comigo a casa para me preparar a sair. Durante a viagem até ao hospital que eu não quis fazer deitado, ela está atenta, olha-me com ar admirativo provavelmente a pensar que tinha ao lado um herói. Nessa altura, mirando-me, pergunta-me se sou poeta. Digo-lhe, sorrindo, quando muito romancista. “Parece um poeta, um anjo.” No percurso, era no rapaz do Saúde 24 24 que pensava, na sua voz envolvente, segura, jovem, graças a ele ia a caminho, não digo da cura, mas da assistência. Há uma semana que não passa um dia sem que eu ligue as antenas do coração para voltar a escutar, no silêncio de mim mesmo, as suas palavras santas, lançadas ao ouvido do paciente, recolhidas no mais fundo de mim, de onde renascem para contar o milagre operado por Deus através dele. Porque tudo foi tão misterioso que é impossível não ter havido a intervenção do meu Criador. Mais: eu que me havia questionado inúmeras vezes sobre o problema de ajuda na hipótese de algum problema, estou agora absolutamente tranquilo graças àquela voz que deu fôlego e sentido à minha existência. “Tenha calma, nós vamos descobri-lo, eu não o abandono.” 

         - Os amigos não se reconhecem pelas palavras, mas pelos gestos acompanhados delas. Muitos são os que me telefonam todos os dias a saber como estou. Alguns, digamos, já esperava. Outros como o Alexandre que vive, julgo que em Oeiras e penso sem carro, disse-me ontem que se tivesse qualquer problema o chamasse “é só passar a ponte e logo aí estou”. Nem ele imagina quanto me tocou, me emocionou. Também a minha sobrinha está horas ao telefone. Hoje mandou-me “para me alegrar” esta foto que eu não conhecia, e me vejo com os meus doces dezassete anos com ela aos ombros no nosso jardim da casa da Foz do Douro. Digam lá se o rapazinho não é giro... E deste modo me livrei da suja e desumana política.