sábado, fevereiro 10, 2024

Sábado, 10.

Insisto em retomar a vida, o mesmo é dizer em pegar pelo braço a escrita. Há uma personagem no livro de Lídia Jorge, Misericórdia, Dona Alberti, mãe da escritora, que anota nas suas folhas A8: “A vida é movimento, quem mais se agita mais vive. A vida é firme, sobrevive quem mais come. A vida é bruta, vence quem mais luta.” Vou seguir-lhe os passos e recomeçar a pincelar com palavras ressabiadas ou ternurentas, empurradas com que me resta de astúcia e vontade, o meu quotidiano. 

         - Para falar do que me voltou a acontecer na madrugada de 7 para 8 desta semana. Como disse fui fazer natação, escrevi neste diário, naquela de ver até onde me levava entrar de novo no ritmo da escrita. Acontece que ao acordar, vi de outra vez uma mancha de sangue na almofada e tinha 18, 7-8,4 de tensão. Derreti de imediato o SOS que a médica de família me havia receitado. Tomei o pequeno-almoço, engoli a pílula dos velhinhos e esperei pela resposta. No telemóvel assinalei 15,6-7,8. Como tinha combinado com a Glória e o Raul irmos tomar café juntos às bombas, despachei-me ao seu encontro. Não me sentia bem e eles notaram. Então a Glória disse-me que fosse com eles para sua casa. Lá estive toda a manhã acabando por lá almoçar, a lareira acesa no máximo, o ambiente acolhedor dos amigos e do espaço, as conversas soltas a encherem as horas sem tempo para pensar nas desgraças. De volta a casa, o medidor afixava 14,5-7.2. Maravilha. Antes porém, no decorrer da conversa, o Raul diz-me que toma o mesmo comprimido diário que me foi prescrito e para dormir uma benzodiazepina qualquer. Peço-lhe um para experimentar ao deitar. Se o fiz é porque estou absolutamente convencido que a origem deste descalabro se deve à minha hiper-sensibilidade. Eu explico. Quando acordei pelas cinco da manhã, fiquei sem sono e entrou de serviço a tonelada de frustrações, modelos de vida, revoltas pessoais e colectivas e até Ana Boavida se juntou ao coro dos assassinos. Lutei contra todos talvez hora e meia no fim da qual consegui conciliar o sono de novo. É quando volto a acordar, pelas sete horas, que vejo o sangue em pequenas gotas na cama. Desta porém, com a droga para dormir, acordei seráfico, verifiquei o travesseiro, depois medi a tensão e tudo parecia ter entrado no normal. Pensei: “Estas livre, rapaz!” 

         - Ontem, decidi ir ao Centro de Saúde contar este episódio à minha médica. Disseram-me que tinha de passar pela enfermeira para medir a tensão. Como aquela unidade é a paz na guerra do SNS, fui logo atendido. Belíssima jovem, tão bela que lhe disse: “Não é preciso preocupar-se, estou curado. – Como assim? –pergunta muito admirada. – Porque a beleza exerce sobre mim um tal apaziguamento que todos os males desaparecem.” Riu-se. Contou-me, então, que na véspera tinha aparecido uma senhora de uns sessenta anos, muito janota, alegre, a vender saúde, com um pormenor: estava com 26 de tensão!!! A minha, nesse momento, com o balde de água fria, precipitou-se por ali abaixo. Ela registou para a médica 14,2-7,5. (A propósito, quando terminar estas notas irei ver que peso teve na construção destas merdelhices excitantes na minha tensão arterial, sendo que às nove horas tinha 13,5-6,0.)    

         - Conversei, conversámos. A dada altura pergunto à médica que substitui a minha de família, se não seria bom ver o que esteve na origem deste terramoto. Ela mostrou-se de acordo, e passa-me visita para um cardiologista com exames de esforço, entre outros. E também radiografia aos rins, barriga e o aparelho que mede todas as batidas do coração durante 24 horas e eu conheço de haver visto usar a Annie. Mais: quer uma bateria de análises ao sangue também. No final mostrei-lhe a caixa dos soporíferos e ela esteve de acordo que devia adormecer com eles, só que com dosagem mais baixa  de 3 mg., a do Raul é de 5mg. 

         - Dali fui a correr à Brasileira onde me esperava o João, preocupado. Ali ficámos à conversa e depois fomos almoçar juntos. Pelas cinco da tarde, tomámos o metro para a Avenida de Roma onde ele mora e eu pego o comboio de regresso a casa. Grande e enervante discussão política com ele a defender o PCP. Digo-lhe, gasta o resto da tua vida de outro modo. Não vale a pena morreres por 1 por cento de gente que o povo rejeita. Fulo contra-argumenta, dando conta dos debates que têm ocorrido nos canais televisivos. Respondo-lhe: não perco o meu precioso tempo com isso. Basta-me saber em que país vivo, quem são os nossos governantes, o que ambicionam, o que têm feito em 50 anos de democracia, o enriquecimento que têm tido, o bodo que dizem distribuir a torto e a eito, as esmolas na forma de subsídios e outros epítetos, sem nos dizerem onde vão buscar tanto dinheiro para aumentar salários, reformas, subvenções, se não ouço um único programa que fale de desenvolvimento. Calou-se, enfim!  

         - Ana Boavida deve sentir-se abandonada. Tanto tem borbulhado no meu cérebro! Longe dela, longe de mim. (Terminado este apontamento, findo com a tensão a  15,2-7,1). É sempre assim! E ocorre-me: Vergílio Ferreira tombou sobre a página, morreu a trabalhar.