segunda-feira, fevereiro 26, 2024

Segunda, 26.

Situemo-nos na história do romance de Lídia Jorge, Misericórdia. Não se tratando propriamente de uma autobiografia, nem de um diário, o facto é que como no-lo diz a autora, ele foi construído a partir de notas e, inclusivamente, do desejo da mãe que a filha viesse a escrever algo a partir das folhas A8 que a falecida tinha rabiscado durante os dois últimos anos de vida no lar de terceira idade Hotel Paraíso.       

O fascinante deste romance, é que mãe e filha nele coabitam, melhor dizendo, as duas escrevem-no como se a mãe contasse à filha a sua história e esta respondesse recriando uma relação que nem sempre conheceu dias felizes.         

Abro um parêntesis, para informar os leitores pouco afeitos às questões da literatura, que normalmente um autor está mais exposto, mais inteiro, no romance do que no diário. Do diarista devemos desconfiar, e provas não faltam ao longo dos tempos, já do romancista precisamos de desvendar muitos dos seus mistérios e quase sempre a sua verdade e idiossincrasia está exposta àqueles que o lêem, largados à vida com seus delírios e paixões que acodem à nossa atenção e se expandem de página em página. Diria que o diarista constrói-se a si mesmo; o romancista expõe-se através das personagens e da trama que forma os alicerces do romance. 

Assim falando, Lídia Jorge oferece-nos um bloco familiar que é de todo o oposto ao mundo cristão da família concebido pela Igreja, à hipocrisia que ronda o núcleo familiar, com fachada e retaguarda, modos e linguagem de ligação a um quadro social fantasioso. Escrito, como só uma mulher era capaz, com uma extrema sensibilidade, afecto íntimo, doçura nas palavras e nos actos, que nos envolve e estimula o que há de melhor na humanidade.        

Os 71 capítulos, sem contar com o posfácio, narram os dias, felizes e infelizes, da mãe no lar com o nome pomposo de Hotel Paraíso. Aí aguardam a morte quase uma centena de homens e mulheres com primazia destas, às ordens de Ana P. de Noronha a directora, e um quadro de assistentes, mulheres e homens, que está sempre a girar por cansaço, mesquinhices, ordenados de miséria. Maria Alberta Nunes Amado, dita Alberti, tudo anota de uma actividade indolente, quantos falecem e deixam o Salão Rosa, o rumor invejoso de uns e outras, os velhos da Sueca que ostracizam o jovem imigrante marroquino Ali Abdul apenas porque, contou ele a Alberti, “a mulher é para marier, o rapaz é para aimer, a cabra é para o plaisir, mas também os amores que se estabelecem e crescem entre Dona Joaninha e cada um dos recentes vistosos anciãos que entram no lar ainda com fôlego amoroso para o sucesso.          

Alberti como a maioria das suas companheiras, a aristocrata dona Rita de Lyon, dona Joaninha a namoradeira, dona Luísa de Gusmão, dona Plínia com cem anos, ali está, ali desembarcam todas não por vontade própria, por escolha ou decisão consciente e imperativa, mas porque o destino lhes outorgou aquele fardo final pesado de carregar contra a existência que se recusa a obedecer ao que sempre havia sido.          

Dona Alberti tenta escapar por entre as sombras humanas que enchem o lar, almoçam e jantam juntas, dormem em quartos de duas e quatro camas, num quotidiano onde cada qual tenta disfarçar alcançando voos muito distantes dali. No caso de Maria Alberta Nunes Amado, a evasão faz-se pelo espírito, entregando-se ao sonho, atravessando a janela do seu quarto, para rever a fímbria marítima que se avista do terceiro piso, num Algarve pronto a acolher turistas vindos dos quatro cantos do mundo; aguardando pela visita da filha sempre ausente em viagem; recordando as árvores e as flores do seu jardim na casa familiar deixada para trás, como para trás deixou tudo menos os sonhos, as recordações, o que ficou por dizer, o que cala para todo o sempre. Algumas dessas mágoas regista-as nas folhas A8. Tem aquele hábito de seguir a filha, escritora, de passar para o papel tudo o que de importante acontece dentro daquelas quatro paredes, outrora um hotel.        

Curiosamente ou talvez não, pouco frequentado pelos familiares que ali depositam os seus entes e se esquecem que eles continuam a existir embora vestidos com a estamenha da morte que é a velhice. Entre si, aquele mundo vegetativo reinventa-se, conta-nos outra história paralela à outra que viveram fora daqueles muros impregnados da certeza do fim – a formidável história de prosseguirem vivos renasce para os levar a  aceitar não só a finitude como o renascimento da vida através das recordações e das fragilidades, das doenças e do vazio habitado pelos pensamentos que não contam a ninguém. Maceram as horas, os dias, os anos... O tempo parece tê-los pendurado no que lhes resta do muito que já não possuem.

Eis senão quando entra o sargento João Almeida. Vem sem farda, de bengala, mas conserva a elegância e usa telemóvel. Não só dona Joaninha se precipita sobre ele, como Alberti que vive na obsessão de saber qual a capital do Azerbaijão. A lonjura aproxima aquela comunidade de gente alheia ao exterior, que se arrebata com o futuro a acontecer na palma da mão do ex-agente da autoridade, o sentimento que o saber é eterno e como eterno pode sobreviver à morte e cerca todos os estratos socais que ali coabitam. Para dona Joaninha ele é o homem formoso, cheio de charme que lhe interessa; para dona Alberti a magia que exibe ao toque no aparelho; para os homens (poucos) o companheiro da sueca no grande salão da residência ou lá fora no jardim quando faz bom tempo. Todavia, o que de mais íntimo nos chega, está plasmado nas folhas amachucadas que dona Alberti guarda debaixo do travesseiro. “O meu espírito, por mais confinado que seja o percurso do meu corpo, até agora, verdadeiramente, não conhece prisão. Esta é a minha casa, mas o mundo lá fora é o meu espaço real.”          

Forma de falar. Porque quando chega o SARS-COV2 e tudo e todos se vergam a um minúsculo vírus escapado pela loucura do homem, o Hotel Paraíso fecha portas e janelas, o jardim é invadido pelo silêncio, as ruas desertas, os funcionários do lar vão desaparecendo um a um, os velhos e velhas circunscritos e isolados uns dos outros, nas ambulâncias seguem os que foram ceifados pela doença cruel, toda uma multidão de gente veste-se como astronautas e a vida parou no meio do mundo abstracto onde agora não se vê vivalma. 

Dona Alberti está atenta a tudo isso e regista nas suas folhas o fim de um mundo outrora risonho apesar de alimentado por ódios, ambições, deserções. “A vida é movimento, quem mais se agita mais vive. A vida é fome, sobrevive quem mais come. A vida é bruta, vence quem mais luta.”

Até que um dia, as janelas e portas da residência abrem-se, as cadeiras aparecem sob as árvores do jardim, novos colaboradores dão entrada na instituição, a vida retoma o seu ritmo lento de quem é comandado e só lhe resta obedecer, porque essa é também a missão da noite que afoga dona Alberti de sobressaltos, sonhos vadios, tumultos e negrumes que ela ousa enfrentar e depois desesperada tenta antecipar o seu próprio fim. “Então a noite, essa noite sem forma animal nem humana, apenas escuridão e voz, perguntou – Chora, chora, porque não choras? Eu respondi: Porque sou forte, porque não me rendo, porque não tenho medo da noite, nem de cair no vazio que a sua forma sem forma mostrava na escuridão, mas o meu corpo, sim.” 

De nada serve dona Mariline, a líder do grupo de cantoras que apareciam de vez em quando para lhes levantar o moral e erguê-las até ao Criador. Ela, Alberti, agarra-se a Lilimunde, a empregada brasileira sua irmã em destino e salvação, explorada mas sempre confiante, alegre, enfrentando a vida que se estilhaça a seus pés. E também a mensagem que lhe deixou antes de morrer o senhor sargento João Almeida depois de a informar que Baku é a capital do Azerbaijão: “Dona Maria Alberta, mande sempre. Tenho toda a informação de que precisa no meu telemóvel.”

Ali “tudo o que acontece, acontece pela penúltima ou mesmo pela última vez”. Que importa quando tempo, como a poeira, assenta para reviver a memória nas páginas de um livro transformado numa obra de arte, intemporal, fascinante e original, que só um autor maduro consegue projectar e que a morte, essa noite escura como breu, jamais sepultará. Apetece dizer, depois de uma obra deste quilate, tudo o resto “é lixo”.