quinta-feira, fevereiro 15, 2024

Quinta, 15.

Vou refazendo os dias como eles eram antes do susto. Ontem, tendo chegado à Avenida da Liberdade pelas nove da manhã, logo me enfiei numa clínica para a série de exames que pedira à minha médica de família na tentativa de descobrir a razão do pico de tensão na noite de 2 para 3 deste mês. Bateria de análises ao sangue, ecografia ao abdómen e rins. Parece que tenho este ligeiramente gordo, eu que sou magro, vinga-se o filtro em engordar. Bref. Desci depois do Marquês de Pombal, a pé, toda aquela artéria até à Brasileira, um pouco atordoado pelo que ia descobrindo de transformação. Perdeu toda a graça de antanho. Antes, somavam-se num cruzamento maravilhoso, todo o tipo de lojas, para todas as bolsas, pequenas e grandes, abastadas e simples, numa variedade original que a humanizava e levava o passante a espreitar para dentro de cada capela enfeitada ao gosto e riso do proprietário e graça da empregada. Pequenos cafés desciam connosco, a par de uma ou outra pastelaria fina e raro estabelecimento de moda com marca de luxo. Ao centro, havia esplanadas sempre muito animadas que se alongavam pela noite fora, num convívio onde não faltava o bota a baixo ao regime escutado por algum pide de serviço. Havia cinemas, teatros, botequins onde se bebia excelente ginjinha e os apreciadores à porta em animadas discussões sobre os seus clubes de eleição, ervanárias, retrosarias e casas de electrodomésticos. Restaurantes para todas as bolsas de um lado e outro da avenida, assim como lojas utilitárias, pensões baratas, prostitutas descendo das laterais até aos passeios largos da larga alameda. A beijar os extremos de ruas e becos que nela desaguavam, bares gays em abundância, sempre animadíssimos, onde iam pela calada da noite os homens do regime e mais tarde os da democracia. A faca na liga atraía essa fauna de homens na maioria casados por disfarce, infelizes e carentes, que tinham nas porteiras e nas serventes a informação precisa do perigo de engatar este ou aquele. Eu muitas vezes, saindo do jornal que ficava no Rossio, depois da uma da madrugada, entrava nessas fascinantes catedrais do pecado e da perdição ou nas marisqueiras onde os “senhores de posição” levavam os chulos e os rufias a jantar antes do delírio da descoberta de corpos decerto sujos e nauseabundos, mas impregnados do cio que saboreia as horas e adormece o corpo na inquietação do perigo. Havia entre essa gente “importante”, quem obrigasse os rapazes da vida airada a um duche antes do envolvimento sexual. Eu escutava toda essa ladainha dos adolescentes cheios de vício, que iam com este e aquele, e transmitiam entre si os apetites sórdidos da clientela com nomes sonantes da nobreza à política. Até ao raiar da manhã, a Avenida da Liberdade era uma passarela onde desfilavam lado a lado, putas e prostitutos. Desciam do Parque Eduardo VII onde a festa começava logo ao cair da noite, entre os arbustos e o fosso do Jardim de Aclimação, com os carros a passar e a fazerem códigos de luzes como flaches a arder na noite escura. Era pegar ou largar. Se o preço e o aspecto convinha, por precaução, a coisa fazia-se ali mesmo, no banco de trás, um suspiro breve, uma dor instantânea, um sopro de liberdade. E toca a andar, venha o senhor que se segue. Toda esta animação, só adormecia assim que o dia raiava para retomar mais tarde quando as sombras da noite aspergiam do céu a inquietação dos cantos e recantos, vielas e becos, que deitavam para a grande avenida hoje morta pela veracidade do lucro, as lojas chiques, a preços mais elevados que as suas congéneres de Paris ou Nova Iorque. Olhei uma lateral e outra, e só vi o vazio que a riqueza e o luxo semeia, satisfaz mas nunca sacia. Àquela hora da manhã, não se via vivalma dentro dos estabelecimentos, porque, talvez, é ao fim da tarde ou pela calada da noite, que dos carros de alto coturno, descem os novos-ricos que a democracia criou: jogadores de futebol, políticos e empresários da candonga, africanas vaidosas e inchadas, dondocas que se deitam com esses monstros de corpo e alma, assassinos, ladrões do género José Sócrates, todo um mundo inútil que malbarata a fortuna em merdelhices que qualquer pessoa minimamente culta despreza. Entrei numa loja de decoração e saí espavorido com o mau-gosto, a saloiice, perguntando-me quem em seu perfeito juízo compraria aquele sofá, aquele canapé, aquela musselina estampada de um horror de meter medo ao diabo. 

         - Chegado à Brasileira já lá estava o João à minha espera. Ficámos como é nosso hábito em amena cavaqueira até perto da hora e meia, altura em que levantámos amarras para um restaurante em Alvalade, O Bistro, que eu não conhecia. Antes porém, perto de nós no café do Chiado, todo ele hoje armado a internacional, repleto 360 dias por ano (Natais incluídos) de turistas, pagando com os olhos da cara, duas simpáticas raparigas (julgo italianas) jogavam às cartas. Delícia suprema pelo inusitado e por aquele golpe que sem querer introduz um toque de familiaridade e provincianismo num mito de excelência. 

         - Quando entrei no O Bistro, tive a sensação que o tempo tinha voltado para trás, para esses anos loucos entre as duas Grandes Guerras. A dona do estabelecimento, vestia à moda dos Anos Vinte, a decoração viajava por lá, a clientela igual, só a cozinha pertencia aos tempos presentes com preocupações bio, sem aditivos, os legumes em primazia e a simpatia e acolhimento em lugar de destaque hoje uma raridade. João fez incursões ma non troppo, pela política e no conjunto das horas a harmonia reinou para meu bem não fosse a tensão aumentar. 

Aqui tudo é saudável. 

         - A pobre Piedade lamuriou por aí hoje manhã e tarde. Tento fazer o que posso por ela, mas não sei se o que realizo ela compreende e aceita. Fiz meia-hora de natação. Tensão mantem-se nos 13,6-7,1. Gastos horas nesta palração, mas ainda não entrei no romance.