quarta-feira, dezembro 06, 2023

Quarta, 6.

Como finda a manhã de três horas de escrita? Dou hoje um exemplo. Ana Boavida acaba de chegar a casa depois de enterrar o pai, desembaraçar-se dos negócios paternos e voltar à sua vida quotidiana... Eis a página escrita de hoje.. 

         - Ana Boavida deixou-se ficar colada ao maple, o olhar vidrado que não deixava ver a vegetação que bruxuleava para lá das vidraças. Num segundo interiorizou que a sua vida tinha caído num abismo, do lugar onde outrora a juventude tinha acampado, restavam os esqueletos de um mundo perdido algures na vastidão desmesurada da memória. A casa, aquela onde tudo havia começado, era a esquife que haveria de a sepultar. E com ela os rumores, os suspiros de felicidade ecoando nas noites brancas, os raios de sol viajando pelas lombadas dos livros, descendo das telas e redesenhando as personagens que pintores de várias gerações cunharam com ousadia e génio, todo aquele interior que levou anos a expandir-se, com a ajuda sobretudo de Rodrigues Santa Clara, estava como ela condenado a desaparecer.  Talvez a luz – pensava -, o silêncio, as sombras, os segredos, tudo o que ficou por dizer planasse no universo que não se situa em parte alguma, ou estará fixado no veio adâmico dos primeiros tempos do mundo.  

         A verdade é que a vida encarrega-se de se ajustar às mudanças não só dos momentos de felicidade, como dos que surgem do nada e se tornam vá-se-lá-saber porquê alçapões de morte. 

         No caso de Ana Boavida, algumas semanas depois de ter deixado para trás o seu papel de empresária, e tendo-se ajustado ao quotidiano sombrio da sua habitação no número 13 do beco Alexandre Ribeirinho, ainda mais triste pelo facto de Kivine permanecer em Marrocos e Fabrizio se ter tornado um jovem introvertido, solitário e ríspido de relacionamento, num  serão que se preparava para passar só, abandonada aos seus autores, o portátil sacudiu-a quando tocou no tampo da secretária onde ela o havia esquecido há alguns dias por inútil. 

         Ana levantou-se enfadada do sofá da entrada, percorreu o salão em linha recta, entrou no escritório e mirou o aparelho que vibrava ligeiramente sobre a mesa. Olhou e tornou a olhar, tentando interiorizar de quem seria aquele número que não estava na sua agenda electrónica. Sentou-se na cadeira, continuando a ouvir a campainha que incansável chamava por quem hesitava em atender. Por largos momentos, ali ficou a olhar o jardim através da janela que tinha na frente, deixando-se embalar por aquele ruído que no silêncio da casa era a companhia que ela tanto necessitava. 

         Quando, de repente, o telefone deixou de chamar. Ana sentiu a dor invadir-lhe o coração, um sentimento de desespero contornava-a, paralisando-a num remorso quedo. A culpa de não haver vencido o desconhecido, cavalgava por todo o seu corpo agora alongado no sofá. Pensava que quem quer que tivesse marcado o seu número, seria bem-vindo, anjo ou diabo, porque a imensa solidão que carregava depois da morte do pai e da partida do filho, era o começo da noite escura a derramar-se sobre os dias provir. 

         Mal se tinha sentado no salão, o telefone voltou a ecoar na casa vazia. Uma vez mais vacilou em ir ver quem a chamava agora. Um impulso misterioso contudo, levou-a de retorno ao escritório onde o mesmo número piscava no mostrador. A medo tocou no botão e ouviu uma voz que não lhe era de todo desconhecida. 

         - Ana, daqui Santiago, Santiago Afonso, o dono do carro que o seu filho abalroou.   

         Ana Boavida abriu o semblante como uma papoila ao romper da manhã, respirou fundo e pela primeira vez depois de um ano, um enorme sorriso de contentamento encheu o seu rosto como o corpo todo.