terça-feira, junho 14, 2022

Terça, 14.

Ontem quando cheguei a Lisboa, vi-me de súbito na capital da minha adolescência: pouca gente nas ruas, metro quase vazio, ninguém a correr, cafés e restaurantes com clientela nativa, um certo ar civilizado que os turistas destruíram. Ainda por cima, o Fertagus com poucos passageiros, carruagens com bancos sem ninguém, ar condicionado a fazer as honras àqueles que nelas iam. No Corte Inglês não havia as habituais moscas brejeiras, espaços livres sem vivalma. Saboreei, por isso, o pequeno bistrot do primeiro andar, onde me demorei a pensar, perdido na sombra imensa das recordações, arquitectando o desastre que foi para Ana a morte inopinada do marido, como Proust diante da chávena de café. Estava-se ali bem, interior refrescado, a ver o tempo deslizar na teia da memória, o murmúrio das vozes e das escadas rolantes tangendo ao longe uma melodia que não feria antes adormecia. Todo este salvíssimo milagre, deveu-se a Santo António que na véspera lançara nas ruas toda a brejeirice refinada de rufias. 

         - Na primeira volta das eleições legislativas francesas a abstenção foi a mais votada. Macron e Mélenchon ficaram fit-fit. Quero acreditar – como de resto a socialista Annie ontem ao telefone – apesar de eu detestar o actual rei de França, espero que os franceses não entrem na aventura daquela famigerada união de esquerda. Os franceses como os portugueses, os alemães ou ingleses, estão fartos desta elite política que os governa. É tudo de uma grande mediocridade, incapaz, sem nível nem capacidade moral e pessoal. Não conseguem combater o flagelo da corrupção, porque são afilhados, camaradas, comadres ou sabem qual das duas mãos é a melhor para rapar o tacho. 

         - É minha convicção que o SNS ou leva uma grande volta ou vai agonizar na falência total. Está tudo errado nele, só o pessoal médico, enfermeiros e assistentes, são de puro quilate. Eu sei do que falo. Embora só uma vez na vida tivesse usado uma unidade  hospitalar, vou de quando em vez a consultas e fico sempre humildemente agradecido a todos aqueles funcionários cheios de paciência e humanidade, horas a fio de uma dureza incrível, com uma palavra, um afago, um sorriso de estímulo à cura. Quando tantos os desafiam a começar pelos míseros 1800 euros líquidos, as horas de quase escravatura de turno, a deixar o público onde os privados os esperam, não para serem clínicos, mas empresas em nome individual, com tudo o que isso tem de precário e frustrante, eles resistem porque sabem que a carreira que escolheram descende da entrega total aos seus doentes. Se ninguém fizer nada pelo SNS ele vai rebentar tarde ou cedo, mais cedo que tarde. Dizem-me que eu tenho muitos leitores nestas classes profissionais, médicos e enfermeiros, sobretudo à noite quando as horas esgotantes são difíceis de passar. Se assim for, aqui deixo o meu agradecimento.