segunda-feira, junho 27, 2022

Segunda, 27.

Por todo o mundo prosseguem as marchas LGBT. Liberdade bizarra para a grande maioria de pessoas que as vêem pelo olho da moralidade social e princípios religiosos. Eu devo ser dos poucos que leu o Antigo e o Novo Testamento, página a página, e não me lembro de nenhuma nota condenatória explicitamente da homossexualidade. Mesmo quando é referida Sodoma e Gomorra, não há nenhuma linha que mencione a relação entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, todas as manifestações ocorridas na Noruega e Turquia não passam de atentados e arregimentações que a sociedade tanto preza como forma de controlo. Tudo o que saia da norma estabelecida deve ser punida. A sociedade não sabe como lidar com o mistério que é a homossexualidade e pouco lhe importa o sofrimento de muitos homens e mulheres, que nasceram sob o domínio que o corpo não dispensa e a moral não consente. Este antagonismo, não vejo em que magoa, altera, penetra e desarranja essa respeitável sociedade. Num país livre, harmonioso e realizado, devem caber todas as formas de vivência desde que consentidas por ambas as partes. Atrevo-me mesmo a afirmar que há mais realização, intensidade, beleza e sensibilidade na sensualidade entre dois seres do mesmo sexo, que na selvajaria heterossexual que os factos e as estatísticas demonstram, como se estivesse ainda na Antiguidade onde a mulher só existia enquanto objecto de satisfação do macho. As falsas interpretações do Novo Testamento e a obsessão de São Paul, como espécie de trauma que o acompanhou em tudo o que diz respeito ao sexo, foram e são causa e consequência do isolamento de homens e mulheres. Muitos conheceram a morte, como em Oslo onde faleceram dois manifestantes e na Turquia onde muitos foram agredidos. Há muita impostura por detrás disto tudo. 

         - Naquele dia, eu disse a Alice que fôssemos tomar café ao centro da cidade e depois passear e fazer compras no mercado principal. Eis senão quando entra no café a Lurdes Féria. Olhou-me, mas não me reconheceu, talvez por estar de máscara. Fui eu que tive de me apresentar e logo ela: “Ah, do Lisboa!” Abancou na nossa mesa a convite da minha amiga. A partir daí recordou-se de mim e de uma infinidade de colegas e amigos comuns. Na Brasileira que antes frequentava, não era muito bem vista por tertulianos e malta dos jornais que ali ia. Os artigos que ela publicava no Diário de Lisboa, assustavam meio mundo político e literário, porque a língua comprida exposta em laudas de maldizer não olhava a nomes nem a relevâncias. Antes como hoje, como naquela manhã, ninguém escapa à sua fúria tempestuosa reduzidos a mediocridade e falsidade literária. Dizia-se de esquerda (repetiu naquele dia), com uma nuance: passou a interessar-se apenas por geopolítica. Nesse sentido, tem escrito muito. Detesta os comunistas e quando lhe disse que o meu primeiro sensor foi o Saramago, logo disparou citando cenas de revolta na redação do Lisboa contra o nosso Nobel. A Alice vendo-nos tão embrenhados no passado, com a catadupa de factos e nomes despejados no tampo da mesa sem cerimónia, convidou-a para o almoço. Disse logo que sim, que ia. Comprou-se o necessário para a cozinha e num ápice estávamos sentados no salão magnífico inundado de sol. Aí prosseguiram as flechas à direita e à esquerda, mas no fundo, olhando-a do lado kairótico, apercebo-me do confronto com Cronos e digo que o contrapeso pode paralisá-la um dia. A realidade é esta: Lurdes não escolheu a solidão, foi a solidão que a escolheu a ela. Por isso, a invocação repetida do casamento, do tempo luminoso de Lisboa, da azáfama dos dias quando o jornalismo a levantava da monotonia que penso ser a sua hoje, numa cidade pequena, vivida dentro de um banal apartamento, só, sem gente culturalmente interessante por perto, os dias em linha recta, sem nenhuma espécie de deslumbramento, a velhice a inundar-lhe o corpo, a mente activa e talvez por isso atenta à decadência que a pouco e pouco se aproxima. Eu sempre gostei dela, porque tenho tendência a ligar-me a inconformistas, revoltados, demónios que vagueiam pelos sítios bem-pensantes e fazem a razia que só eles podem e conseguem fazer. Está uma tira de carne e osso, os nervos obstam a uma sã aparência. Mas há, todavia, qualquer coisa que brilha nos seus olhos pequenos, uma inquietação, uma lalação permanente que a distancia dos outros – qualquer aproximação queima. 

A seguir ao almoço, fomos dar uma volta pelos quatro hectares do jardim: estupefacção, deslumbre, beleza viva. Alice construiu uma excelente obra de arte, fê-lo sozinha, oito horas por dia debruçada a plantar, podar, regar, desenhar os contornos de um espaço fabuloso que abriga milhares de espécies, com gosto e sabedoria. É como uma viagem ao interior de um ser vivo que se nos oferece em harmonia e bom gosto, em sensibilidade e força. Tanto eu como a Lurdes tivemos direito a conhecer espécies para mim desconhecidas, trouxemos pés para replantar e saímos daquele local soltos, felizes, perfumados e apreciando a natureza como Dom Quixote  tomados de encantamento. 

Alice também têm a paixão pelas hortênsias