sexta-feira, setembro 03, 2021

Sexta, 3. 

Num país como o nosso, governado por gente competente e honesta, instituições sólidas, que administram com critérios de rigor e atentos aos contribuintes que pagam cada vez mais impostos, diluídos por um sem-número de taxas e taxinhas, o que vou anotar, como direi, é coisa de somenos importância que nem deveria passar por estas páginas ilustres. Acontece porém, que vivo revoltado com tudo o que se passa e para acalmar nada melhor que pedir ajuda à escrita como tantas e tantas vezes me sucede. Falo da embarcação Bojador, recentemente adquirida por 8,5 milhões de euros e que sem explicação, a danada, foi encalhar junto à praia de Carcavelos. A lancha de alto coturno, com tecnologia de ponta que lhe pertence, foi oferecia não à Marinha, mas à GNR e servia para patrulhar a costa portuguesa! O célebre ministro do Interior, em Maio deste ano, teceu loas ao acontecimento. Acabou três meses depois adormecida decerto de cansaço no areal. O epitáfio, naturalmente e como hábito neste nosso infeliz país, vai ser escrito depois do apuramento das causas e circunstâncias da situação em sigiloso inquérito. Quando? Não sei, lá para as calendas do ano... 

         - Inundações monumentais em Nova Iorque, Pensilvânia, Nova Jérsia e outras grandes cidades dos EUA. Morreram várias pessoas, mais de 200 mil ficaram às escuras. Em Espanha aconteceu o mesmo e um pouco por todo o mundo ocorrem fenómenos climáticos destes com mais frequência. E logo surge o lamento do aquecimento global, mas ninguém move um passo para dar a volta que se impõe. 

         - Ontem almocei com o Carlos no Corte Inglês. Tendo chegado a Lisboa antes das oito, fui daqui pela noite de breu tendo-me levantado às cinco e meia. O motivo foi conhecer o meu novo médico de família e com ele, no caso ela, fazer o exame geral da minha saúde. Depois de demorada conversa, deixei o gabinete com o habitual check up que todos os anos realizo. 

          - João Corregedor telefonou a dar-me a má notícia: “morreu a Isabel da Nóbrega”. Senti um bate no coração. A Isabel, há pelo menos vinte anos, que andava alheada das lides literárias, tendo-se refugiado em Cascais em casa (julgo) do filho. Deve ser por isso que, num mundo onde quem não aparece na TV não existe, quase ninguém fala do seu desaparecimento e muito menos da sua obra. Fui buscar à estante todos os livros que possuo dedicados e lidos, para os ter perto de mim por uns dias: Viver com os outros, Camões Diário, Solo para gravador, Quatrim-1, Os Anjos e os Homens (a capa é de Martins Correia, o exemplar é numerado com o número 3) e, ainda, Viagem a Portugal de José Saramago dedicado e assinado pelos dois “viajantes”. Se sinto a sua ausência, é porque uma parte substancial da minha vida foi vivida ao lado dela e de José Saramago. Guardo noites e tardes inteiras passadas juntos ou a sós com a Isabel em conversa que nunca tinha fim na Rua de S. Marçal, no Varina, na sua casa ou aqui na quinta. Era uma mulher admirável, uma intelectual livre, que exprimia o que lhe ia na alma sem pudor embora velado pela educação esmerada que fora a sua. Abriu-se muito comigo, contou-me coisas da sua vida íntima com João Gaspar Simões, com Saramago, com esta e aquele, obrigando-me a jurar que “nunca contaria a ninguém, nem deixaria escrito”. Querida Amiga, o que prometi cumpri e cumprirei até ao fim da vida. Não me esqueço de nada e porque partiu deixando-me atónito e só, vou fazer o seu luto e o meu porque em verdade uma parte de mim morreu também. Faço por esquecer o que nos dividiu, sobretudo durante aquela viagem que fizemos juntos a Marrocos que sempre me entristeceu. Descanse em paz. Agora já conhece o rosto de Deus cujo tema falávamos com frequência. Que os anjos e os arcanjos a tenham recebido em festa e no repouso eterno possa guardar-me um estreito espaço para mim. Tudo à minha volta é negro até o silêncio.