domingo, setembro 05, 2021

Domingo, 5.

Falemos das fantasias habituais em tempo de campanha. Aqui em Palmela, a poluição de toda a ordem está ao rubro. Dizem eles que é a democracia a funcionar. Bom. Mas dizem mais: é a pré-campanha em marcha. Só que, andando eu por aqui e por ali, vejo cartazes por todo o lado e o número de candidatos à câmara é tanto que espanta para uma pequena vila. Como se o país não andasse sempre em campanha, vendendo o que tem e o que não possui, prometendo o que pode e o que não pode dar. Acontece que um dos cartazes apresenta dois anafados senhores, de fato e gravata, uma postura que não lembra ao gatuno, que eu francamente não sei quem são. Mas sabem os de cá. E vai daí, mesmo antes de eles se aproximarem do tacho, já foram barrados com uma enorme cruz a preto. O curioso é que os indignados – admitindo que não são os adversários – apontam a sua repugnância aos dois ilustres desconhecidos não deixando um só poster sem a marca da sua ira. 

         - Outro dia encontrei-me com o Carlos Soares na fnac. Antes de deixar o estabelecimento, fui à livraria encomendar os dois volumes do Diário de Green que serão postos à venda dia dezasseis. A rapariga que me atendeu, a dada altura, diz-me que leu Moira e o encantamento foi tal que nunca mais esqueceu a história. O contacto com o autor deu-se na universidade. A professora não aconselhou a sua leitura devido ao conteúdo sem especificar de que se tratava e foi por isso que ela se atirou a lê-lo em inglês. A partir daqui cresceu um diálogo transbordante de entusiasmo, aconselhando eu outros romances e, sobretudo, o primeiro volume do Journal intégral que ela não conhecia. Disse-lhe em determinado momento: “A vida de Julien Green e toda a sua obra é uma consistente e dramática busca de Deus.” A minha interlocutora surpreende-se com esta afirmação e diz que foi essa a impressão com que ficou quando terminou o romance. O Carlos que destas coisas nada percebe, estava de olhos abertos a ver-nos falar, numa roda-viva de coisas comuns como raramente surge neste país onde o futebol é apaixonadamente o único tema de discussão. Eu não lhe disse que Moira e todas as outras personagens femininas são travestis que o escritor criou e que lhe competia a ela substituir por um nome masculino. Mas como ela me disse que eu havia falado tão vivamente da obra de Julien Green, que iria ler o primeiro volume do diário póstumo. Se o fizer descobrirá a tristeza que o diarista deixou plasmada nas páginas de não haver tido coragem de chamar os bois pelos nomes. 

         - Ontem de manhã encontrei-me com o João Corregedor e fomos juntos à Basílica da Estrela despedirmo-nos da Isabel da Nóbrega. Morreu com a bonita idade de 96 anos e, segundo me disse o neto, sem uma doença, lúcida, divertida, serena – partiu de velhice, sem sofrimento, como raramente advém ao comum dos mortais e eu gostaria que assim Deus me chamasse. A capela que a acolheu, estava fresca, florida, ondeando, diáfana. Àquela hora só nós e os familiares. Depois de uma prece junto ao caixão fechado com uma fotografia a preto e branco da defunta quando era menina e moça, linda e fina de traços, sorri recordando-me como ela detestava a senectude e como os seus parentes tinham cumprido neste particular os seus desejos. Logo à entrada uma enorme coroa de flores de Marcelo Rebelo de Sousa. Bom. Quando deixei a capela, juntei-me com o João ao filho, filha, neta e neto que aguardavam os visitantes no claustro da basílica. Com o neto que eu conhecera in illo tempore, quando éramos jovens, ele mais novo que eu, ambos tão diferentes que não nos reconhecemos ali. Na longa conversa sobre a avó, a empatia entre nós foi imediata, as recordações remando, os sentimentos aflorando, e a dada altura tive de parar porque senti que ia irromper num pranto. João afaga-me o braço e eu consegui disfarçar o que sentia num instante. Ufa! O neto pediu-me o número de telefone para breve nos voltarmos a encontrar. 

         - Passava do meio-dia. Aquela artéria da cidade tinha muito movimento, o jardim em frente regurgitava de visitantes, estrangeiros e nacionais. Por sugestão do João que conhece como ninguém os transportes públicos, tomámos um eléctrico apinhado ali mesmo que nos deixou no Chiado. Percorremos depois a Rua Anchieta em busca dos nossos queridos amigos (eu comprei o ensaio de François Mauriac sobre Pascal e Cartas sem Moral Nenhuma de M. Teixeira Gomes). Descemos até ao Rossio para abancar no restaurante favorito do meu amigo, uns quarteirões para o lado do Tejo. Aí nos demorámos em animada conversa sobre tudo e nada, eu a tentar fugir da política, o João com incursões nela. De todo o modo, foram duas horas agradáveis, sob um dia quente q.b., num país e num lugar que a Isabel amou. Só não foi pleno porque o João estava apoquentado com a filha que depois de ano e meio de ter contraído o coronavírus e três meses em coma, para o hospital retornou há três dias num estado lastimável.  Dezanove comprimidos por dia não são suficientes para a aproximar do que fora.