sexta-feira, setembro 10, 2021

Sexta, 10. 

No chorrilho de mensagens e telefonemas de ontem, sobrou o acordo com a Annie para que eu chegue no mês que vem a Paris sem marcação de regresso. Vou ter pois de entrar na algazarra electrónica para encontrar uma companhia de aviação honesta que me deposite em Charles de Gaulle. Em dois anos, imagino haver tanto livro que me escapou e já me vejo horas e dias fechado nas livrarias. Só este mês já devo ter gastado uns 200 euros em esse alimento miraculoso. 

         - Nem a propósito, estamos de parabéns. Tinham-nos asseverado um Verão sufocante, com fogos, faltas de ar, aflições cardíacas e o que tivemos foi um tempo ameno, quente q.b., braçadas na piscina e no mar em abundância. Nestes dias, voltámos àquele Verão que me recebeu nesta casa abençoada nos inícios dos anos oitenta, a pressa que nós tivemos, João e eu, em a pintar por dentro e por fora com medo do inverno e dois dias depois, a nove de Setembro desse ano, a abada de chuva que só parou na Primavera, já nós nos recolhíamos sob este tecto humilde e acolhedor. Não é que o sol seja um inimigo, pelo contrário; segundo um provérbio chinês: “Quando o sol aparece, o médico desaparece.” Felizmente, antes da bicha madrugadora me ter assaltado, já eu havia recolhido toda a lenha necessária a um aconchegado inverno. 

         - O mundo das embaixadas dá e sobra para tudo como demonstrou Roger Peyrephite... No caso Morand, que nelas viveu no tempo da Segunda Grande Guerra – Londres – Berne, Roménia (estas duas sob o governo de Pétain), o clima de festa, conforto e luxo passava completamente ao lado do resto do mundo e seus ocupantes. Paul Morand, no seu Journal de Guerre, tanto ele como a mulher Hèléne uma aristocrata de origem romena, nunca conheceram a mínima privação. Os dias eram de jantares e almoços galantes, equitação, viagens, bons hotéis, visitas a museus e antiquários, aquisição de belos objectos e até casas. Dentro dos muros das embaixadas e nos almoços de espionagem económica e política, de inveja e bajulação, vénias e facadas nas costas, o clima era de diz-se-que-disse, falatório sobre a homossexualidade deste e daquele, dentadas no matrimónio e assim. O Dário que não passa de epistolografia com a mulher e desta, bera, para ele, é um longo historial não de factos da guerra, mas das relações e tratados da mesma. Paul Morand, tendo sido posto de parte por De Gaulle, só vem a ser reabilitado por volta de 1953. Mas é dele esta máxima: “La politique est la vérole de la littératura.”  Justo. 

         - Fui fazer um electrocardiograma e à enfermeira perguntei: “É uma obra de arte? Diz bem” respondeu com um grande sorriso. E logo eu a pensar: “Então de que vais morrer, rapaz? Da maluquice que te enche o cérebro? Pensar demasiado e constantemente mata? A ver vamos, quero dizer, verão. 

         - Fontes da Eurostat. Os gastos em cultura são o pilar para se perceber o interesse dos governos na qualidade de vida dos cidadãos. Assim: em primeiro está a França com 16. 816 milhões de euros, seguida da Alemanha 13.870 e Reino Unido 5560, 7. Depois, nos países com menos interesse no conhecimento, Portugal vem em 20º lugar dos 31 que compõem a dita cuja com 553,3 euros. A Espanha vem na quarta posição com 5.535. A Hungria que a esquerda diz raios e coriscos, investe 1.655, 4. Se somarmos ao que o país faz em esquemas sociais, temos o paraíso que não interessa aos portugueses segundo as meninas BE. 

         - Acabei de entrar do segundo almoço aniversariante que o João Corregedor quis organizar em minha honra. Teve lugar na Trindade, defronte do rio, num dia luminoso, aberto, cheio do esplendor dos dias de então quando a juventude imperava por sobre os avisos da idade e na indiferença dos anos a provir. Que bem se esteve com vista para as águas mansas, os reflexos do sol sobre o tapete líquido que parecia dançar em nossa glória, o vasto espaço bem decorado, pouca gente e uma atmosfera de festa e serenidade de onde não apetecia levantar amarras. Muita gargalhada entre nós, o tempo suspenso a aguardar que a inocência imperasse sobre os primeiros acordes da senectude, ainda não visíveis, insinuados numa excitação, numa dúvida, num lapso de memória, numa escusa de algo que ficara suspenso entre o passado e a chamada ao presente. Marília surpreendente, sem idade, igual à mulher maravilhosa que sempre conheci, original, desimpedida de preconceitos, amiga do seu amigo. 

         - Da chusma de mensagens, telefonemas, mails, três horas a atender esta inusitada lembrança do solitário amigo, surpreendeu-me e agradeço. Dispensaria, contudo, os “amigos” que, como no poema de Pessoa, só se lembram de nós uma vez pelo nosso nascimento e outra pela nossa morte. Verdadeiramente não se conta com eles para nada, são piscadelas de olho que ofendem pela sua inutilidade e insignificância. São amigos que fora da data de nascimento esquecem a vida, a partilha, a presença, o desabafo, a troca de ideias, a mão que afaga, o sorriso que nos ilumina o coração... Chegam do fundo do abismo que nos separa e não nos junta no hosana dos dias tristes e felizes. São na sua maioria casados, egoístas, portanto, infelizes.