Segunda,
23.
Ontem
fui à sessão da noite ver o último trabalho de Almodóvar: Dor e Glória. Saí por assim dizer desfeito. Felizmente que não
viajo de carro e pude no comboio aligeirar a cabeça e as emoções. O filme é
notável, corajoso, belo, desnudado de preconceitos e por isso verdadeiro, à
semelhança do seu realizador que se metamorfoseia na personagem de Salvador
Mallo, encarnada pelo actor espanhol Antonio Banderas. História, de resto muito
bem contada, com o cruzamento do passado no presente e deste de volta ao
passado, isto é, à infância do autor, está muito bem construída e lembra no
cinema o que Proust fez em literatura. É a confissão, o testamento de um homem
devorado pela droga, a doença, o falhanço amoroso, o desnorte da vida, numa
cidade devoradora como Madrid mas, simultaneamente, um artista que o mundo
chama, aplaude, diviniza, traz-lhe riqueza e honras, sem, contudo, o apaziguar.
A ele falta-lhe o essencial – o amor da mãe, a paixão terminada
intempestivamente, a paz do corpo que sofre das consequentes frustrações,
depauperamentos, depressões. Pela escrita do seu derradeiro filme e pelo
reencontro do amor da juventude – é de admirar a coragem que Banderas teve ao
beijar demoradamente na boca o actor Leonardo Sbaraglia – tudo parece entrar
nos carris da arte enquanto salvação e equilíbrio do artista. Devo, todavia,
penitenciar-me: nunca fui grande cultor da cinematografia de Pedro Almodóvar,
vi quando muito dois filmes.
- Sempre que encontro um livro do
historiador Mário Domingues não resisto a adquiri-lo. Foi o caso de O Marquês de Pombal, um estudo sobre o
homem e a sua época, que vi num alfarrabista. Comecei logo a lê-lo porque a
História tal como no-la conta Domingues é envolvente, rigorosa e enriquecedora.
- Os manifestantes em Hong Kong não
desarmam. Ontem as cenas de violência de parte a parte foram extremas. Lojas
chinesas saqueadas, desordem nas ruas, caos e desespero. Ninguém parece mostrar
medo a Jinping ping ping.
- Uma hora encantatória a ouvir a
música de charles Ives.
- Rajadas de sentenças ferozes umas
vezes, suaves outras entraram e saíram da Brasileira onde em várias mesas estava
abancado um grupo de umas oito pessoas. Quando cheguei pelas dez horas,
abriram-se alas para me sentar no epicentro do vulcão que foi tomando força ao
longo da manhã. Uma série de temas disparados a vol d´oiseau, elevaram a conversa, distorceram-na, espremeram-na,
quase sempre em torno da arte como é habitual. Depois falou-se (demoradamente)
de psicologia. Eu botei discurso e o Brito também. Depois eu, a dada altura,
disparei: “A padronização da psicologia anula o indivíduo.” Antes Brito tinha
dito para a geral, que eu tinha uma espécie de humor idêntico ao de Eça de
Queiroz, que o meu discurso é sempre profundo, mas esconde um pensamento que é
preciso decifrar. E acrescentou: “Eu só há pouco tempo é que comecei a perceber
a tua personalidade e inteligência. Levei algum tempo, mas agora acho que sou
capaz de entender muita coisa do que tu dizes...” Fiquei desamparado. O Brito,
se alguém percebe de psicologia é ele. Foi agente da Judiciária em Macau,
jornalista, e mais não sei o quê. Tem bagagem suficiente para anular qualquer medíocre
ou pseudo-intelectual que tente enfrentá-lo. Ante o seu amável juízo, disse: “Sabes,
tudo o que penso e sou, não o aprendi na escola ou na faculdade, mas na solidão.”
Silêncio por largos segundos entre os tertulianos.