segunda-feira, setembro 23, 2019

Segunda, 23.
Ontem fui à sessão da noite ver o último trabalho de Almodóvar: Dor e Glória. Saí por assim dizer desfeito. Felizmente que não viajo de carro e pude no comboio aligeirar a cabeça e as emoções. O filme é notável, corajoso, belo, desnudado de preconceitos e por isso verdadeiro, à semelhança do seu realizador que se metamorfoseia na personagem de Salvador Mallo, encarnada pelo actor espanhol Antonio Banderas. História, de resto muito bem contada, com o cruzamento do passado no presente e deste de volta ao passado, isto é, à infância do autor, está muito bem construída e lembra no cinema o que Proust fez em literatura. É a confissão, o testamento de um homem devorado pela droga, a doença, o falhanço amoroso, o desnorte da vida, numa cidade devoradora como Madrid mas, simultaneamente, um artista que o mundo chama, aplaude, diviniza, traz-lhe riqueza e honras, sem, contudo, o apaziguar. A ele falta-lhe o essencial – o amor da mãe, a paixão terminada intempestivamente, a paz do corpo que sofre das consequentes frustrações, depauperamentos, depressões. Pela escrita do seu derradeiro filme e pelo reencontro do amor da juventude – é de admirar a coragem que Banderas teve ao beijar demoradamente na boca o actor Leonardo Sbaraglia – tudo parece entrar nos carris da arte enquanto salvação e equilíbrio do artista. Devo, todavia, penitenciar-me: nunca fui grande cultor da cinematografia de Pedro Almodóvar, vi quando muito dois filmes.

         - Sempre que encontro um livro do historiador Mário Domingues não resisto a adquiri-lo. Foi o caso de O Marquês de Pombal, um estudo sobre o homem e a sua época, que vi num alfarrabista. Comecei logo a lê-lo porque a História tal como no-la conta Domingues é envolvente, rigorosa e enriquecedora.

         - Os manifestantes em Hong Kong não desarmam. Ontem as cenas de violência de parte a parte foram extremas. Lojas chinesas saqueadas, desordem nas ruas, caos e desespero. Ninguém parece mostrar medo a Jinping ping ping.

         - Uma hora encantatória a ouvir a música de charles Ives.


         - Rajadas de sentenças ferozes umas vezes, suaves outras entraram e saíram da Brasileira onde em várias mesas estava abancado um grupo de umas oito pessoas. Quando cheguei pelas dez horas, abriram-se alas para me sentar no epicentro do vulcão que foi tomando força ao longo da manhã. Uma série de temas disparados a vol d´oiseau, elevaram a conversa, distorceram-na, espremeram-na, quase sempre em torno da arte como é habitual. Depois falou-se (demoradamente) de psicologia. Eu botei discurso e o Brito também. Depois eu, a dada altura, disparei: “A padronização da psicologia anula o indivíduo.” Antes Brito tinha dito para a geral, que eu tinha uma espécie de humor idêntico ao de Eça de Queiroz, que o meu discurso é sempre profundo, mas esconde um pensamento que é preciso decifrar. E acrescentou: “Eu só há pouco tempo é que comecei a perceber a tua personalidade e inteligência. Levei algum tempo, mas agora acho que sou capaz de entender muita coisa do que tu dizes...” Fiquei desamparado. O Brito, se alguém percebe de psicologia é ele. Foi agente da Judiciária em Macau, jornalista, e mais não sei o quê. Tem bagagem suficiente para anular qualquer medíocre ou pseudo-intelectual que tente enfrentá-lo. Ante o seu amável juízo, disse: “Sabes, tudo o que penso e sou, não o aprendi na escola ou na faculdade, mas na solidão.” Silêncio por largos segundos entre os tertulianos.