Quinta,
19.
Ontem
tive três esquecimentos que me deixaram preocupado. Coisas sem importância
conquanto eu controle muito bem tudo o que se passa no meu cérebro. Esta manhã,
falando com a Piedade, desabafei que me sinto muito cansado cerebralmente. E
ela: “É todos os anos nesta altura a mesma coisa. Antes de partir para Paris,
anda sempre abatido.” Talvez ela tenha razão. Contudo, ontem, não obstante as
contas para a frente e para trás, não conseguia atinar com a multiplicação dos
euros a pagar ao Brejnev, por exemplo. Assim como esqueci-me de pôr o gato na
rua, pela primeira vez o bicho dormiu dentro de casa. Normalmente é ele que
pede para sair, mas como ontem ambos estávamos amnésicos, nem ele nem eu cumprimos
o gesto habitual. Conclusão: pipi de gato na sala de jantar atacado com lixívia
pela Piedade. O terceiro já é norma: deixei as chaves na parte de fora da casa
durante a noite.
- Esta história das golas de protecção
aos fumos dos incêndios que se revelaram ter sido mais um acto de corrupção que
já a ninguém surpreende tendo em conta o país que somos, lembra aqueloutra
(recordam-se?) obrigou os automobilistas a comprar uma pala para os pneus traseiros porque, diziam, evitava acidentes quando a chuva e a lama lançava no
carro que vinha trás sujidades. Aquilo é que foi ganhar dinheiro! Naquela como
nesta, são sempre os mesmos à vez ou em conjunto - do PS e PSD. É por estas e
por muitas outras que nunca voto nesta gente.
- Outro dia vi no canal Arte, um
programa sobre o Palácio dos Papas, em Avinhão. Logo uma avalanche de
recordações inundou o meu cérebro. Eu explico. Quando tinha uma vida profissional intensa
e bruta e não me sobrava tempo para nada, salvo na época santa do Natal e Ano
Novo, tinha o bom hábito de aproveitar esse período para sair do país. Talvez
uns três anos seguidos, fui ao encontro do pintor Michel Gonzalez que possuía
uma casa na montanha, em Gordes, no Vaucluse. Sem querer voltar a narrar o que
está escrito em páginas desse tempo, o que as imagens mostravam, era a beleza
límpida da paisagem, o rumor do silêncio que subia lá de baixo e era depois
misturado com o ruído infernal do Mistral nas janelas da velha casa isolada e
mal aquecida. O Michel ocupava o atelier na parte recuada da moradia, eu esta
com as estruturas funcionais como o meu quarto ao lado do salão e da cozinha.
Estávamos, portanto, isolados e durante as noites experimentava várias
sensações, que iam do medo à tranquilidade. Até que uma vez, senti alguém bater
à porta de vidro da entrada. Pavor. Que fazer? Saí com mil cuidados e fui
espreitar. Um vulto tinha o rosto colado aos vidros como a certifica-se se
estava alguém no interior. Chamar pelo meu amigo, era inútil. Não avancei, mas
também já não me deitei. Daí a um certo tempo, fui ouvido barulhos indistintos,
até que a porta se abriu e entrou o Michel e o tal visitante – um homem de meia
idade, com uns grandes óculos e um sorriso insinuante no rosto. “Não se
assuste”, disse ele. A lareira tinha o borrão de brasas quase extinto.
Sentámo-nos em redor e o nosso hóspede desenfiou do enorme casacão uma garrafa
de absinto. Michel trouxe pão e chouriço, fez uma grande omelette flambée – a sua especialidade. Seriam talvez dez da noite.
Uma noite muito fria, tocada a vento Mistral que assobiava, daquelas noites “que
o vento que anda, desanda e sarabanda, e ciranda derredor da casa” nos paralisa
de respeito e receio. Ficámos à conversa até tarde. O nosso visitante, era um
escritor com mulher e filhos em Paris, que para a montanha vinha para se isolar
e poder trabalhar com sossego. Insistimos que ficasse, dada a fúria do vento,
mas ele, habituado às agruras do tempo e da solidão, optou por descer a pé a
serra. Todavia, apesar da vida austera que o meu amigo levava, percorríamos
muitas manhãs as aldeias e vilas das redondezas. Uma vez passámos o dia em
Avinhão e percorremos o palácio do séc. XIV em todas as direcções, residência
do Papa Clemente VI dito o magnífico, e que na Idade Média era considerado a
capital do Ocidente Cristão. Do interior recordo pela novidade e beleza dos
traços e cor, a capela de S. Marcial, obra de Giovanetti, assim como os imensos
claustros, as dezenas e dezenas de salas, que Inocêncio VI acrescentou ao mesmo
tempo que introduzia a Ordem Cisterciense, em cuja abadia de Senanque, alguns
quilómetros na direcção de Carpantras eu costumava parar para comprar queijos
feitos pelos monges de branco vestidos e espreitar os campos azulados de
alfazema. De resto, dali até Wberon, vastas extensões a perder de vista,
pintadas de cor azulada davam à paisagem não só o perfume, como uma alegria
desfraldada que nos contagiava de manhã á noite. Ficaram-me os olhos naquelas
terras, atravessadas por pontes medievais, árvores centenárias, o ar levíssimo que
me levava, levava, levava...