sexta-feira, julho 05, 2019

Sexta, 5.
Como acontece todos os anos chegado a esta altura, descaio, mergulho fundo na depressão, desisto de mim e de tudo o que me rodeia, vivo numa ansiedade extrema, mergulho a cabeça no desespero e entro em lágrimas no sudário dos dias e meses infelizes. Nenhum médico conseguiu alguma vez explicar-me a razão deste mal-estar, nenhum o curou com eficácia. O que se aproximou, foi o meu saudoso professor António dos Santos Castro, que a minha querida Teresa de Sousa me aconselhou e que foi seu professor na Faculdade de Medicina de Lisboa. Foi ele que pela  primeira vez me receitou o Valdispert na dose estudada e que eu ontem, depois de ter experimentado outras drogas, decidi retomar respeitando a sua posologia. Não digo que foi tiro e queda. Contudo, esta manhã, no Café da Casa, retornei titubeante  ao Juiz Apostolatos. Revi 20 páginas com serenidade, calmíssimo, quase seráfico, uma cocega de empolgamento a friccionar-me as cordas da sensibilidade, a inundar de plenitude todo o meu ser abatido pelos meses sem vida que têm sido os meus. Provera Deus que assim continue. É-me absolutamente indispensável a escrita, sem ela desapareço engolido por todas as dores que me entulham o corpo, me desafiam ao suicídio, me projectam no vazadouro dos mortos.

         - Durante as três horas que estive naquele excelente e luminoso espaço, escolhi uma mesa logo à entrada com vista para a Luísa Todi. Lá fora avançava a manhã, com gente de todas as idades a passear ao passo lento das manhãs frescas e claras. Um cliente idoso, com bigode e cabelo coberto do brilho da neve, fumava com gestos lentos, contemplativos na esplanada. Estava de costas para mim, e só quando percorria a artéria da esquerda para a direita e vice-versa oferecendo-me o perfil, eu podia admirar o seu ar nobre onde antes decerto pousou uma vida difícil conglutinada nas linhas rudes do rosto. No primeiro friso de árvores bruxuleava o sol variando os tons de verde; lá para o centro da avenida, pareceu-me reconhecer mimosas em flor e no grande rectângulo da montra, entravam os prédios do outro lado, a harmonia da natureza reduzida aos canteiros verdejantes e, sobretudo, o incontável destino dos passantes sacudidos pelos seus afazeres ou absortos a descodificar dores e sofrimentos. A intervalos da escrita, fixava aquele mundo, aquela atmosfera suave, aquele ritmo que me parecia parado nas margens sombrias de um tempo ido, espécie de pousio de que a minha cabeça carecia e logo se inflamou ante os dois mundos reencontrados – o real e o imaginário.