Sexta, 5.
Como
acontece todos os anos chegado a esta altura, descaio, mergulho fundo na
depressão, desisto de mim e de tudo o que me rodeia, vivo numa ansiedade
extrema, mergulho a cabeça no desespero e entro em lágrimas no sudário dos dias
e meses infelizes. Nenhum médico conseguiu alguma vez explicar-me a razão deste mal-estar, nenhum o curou com eficácia. O que se aproximou, foi o meu saudoso
professor António dos Santos Castro, que a minha querida Teresa de Sousa me
aconselhou e que foi seu professor na Faculdade de Medicina de Lisboa. Foi ele
que pela primeira vez me receitou o
Valdispert na dose estudada e que eu ontem, depois de ter experimentado outras
drogas, decidi retomar respeitando a sua posologia. Não digo que foi tiro e
queda. Contudo, esta manhã, no Café da Casa, retornei titubeante ao Juiz
Apostolatos. Revi 20 páginas com serenidade, calmíssimo, quase seráfico,
uma cocega de empolgamento a friccionar-me as cordas da sensibilidade, a
inundar de plenitude todo o meu ser abatido pelos meses sem vida que têm sido
os meus. Provera Deus que assim continue. É-me absolutamente indispensável a
escrita, sem ela desapareço engolido por todas as dores que me entulham o
corpo, me desafiam ao suicídio, me projectam no vazadouro dos mortos.
- Durante as três horas que estive
naquele excelente e luminoso espaço, escolhi uma mesa logo à entrada com vista
para a Luísa Todi. Lá fora avançava a manhã, com gente de todas as idades a passear
ao passo lento das manhãs frescas e claras. Um cliente idoso, com bigode e
cabelo coberto do brilho da neve, fumava com gestos lentos, contemplativos na
esplanada. Estava de costas para mim, e só quando percorria a artéria da
esquerda para a direita e vice-versa oferecendo-me o perfil, eu podia admirar o
seu ar nobre onde antes decerto pousou uma vida difícil conglutinada nas linhas
rudes do rosto. No primeiro friso de árvores bruxuleava o sol variando os tons
de verde; lá para o centro da avenida, pareceu-me reconhecer mimosas em flor e
no grande rectângulo da montra, entravam os prédios do outro lado, a harmonia
da natureza reduzida aos canteiros verdejantes e, sobretudo, o incontável
destino dos passantes sacudidos pelos seus afazeres ou absortos a descodificar dores
e sofrimentos. A intervalos da escrita, fixava aquele mundo, aquela atmosfera
suave, aquele ritmo que me parecia parado nas margens sombrias de um tempo ido,
espécie de pousio de que a minha cabeça carecia e logo se inflamou ante os dois
mundos reencontrados – o real e o imaginário.