quarta-feira, julho 03, 2019

Quarta, 3.
Convidei o Filipe para um almoço. Levei-o à Confeitaria Nacional, o velho restaurante da Praça da Figueira, que está onde está desde antes de eu e ele sermos nascidos. Que bem se come ali, ambiente agradável, com vista para aquela praça emblemática de Lisboa e nem a mistura de línguas e o desassossego dos turistas, alteraram. Encontro agridoce, por o saber, a ele e à mulher com dois filhos, no desemprego. Dizia-me o meu criativo que na última agência de publicidade onde trabalhou, ganhava o mesmo que eu lhe pagava há dezanove anos! Porco país, miserável povo que nele teve a pouca sorte de ter nascido.  

         - Eu continuo a pensar que a história de Joe Berardo está mal contada. Ele, pela sua natureza e personalidade, presta-se a ser o bobo da corte, com socialistas a assistir de camarote. Estou absolutamente de acordo com ele, no que se refere à sua indignação ao inquérito parlamentar a que o submeteram. De facto, aquelas audições parecem pidescas, pouco educadas e arrogantes. A viúva do BE, com o seu ar vitorioso que acena à mediocridade, a suas investidas masculinas de uma soberba irritante, qual GNR fardado em dia de gala, indignam-me e obrigam-me a ter saudades de tempos que não gostaria de recordar e muito menos voltar. A maneira obstinada como ela se dirige às pessoas, tendo na mente emporcalhada a certeza que todos são corruptos e assassinos e só ela é a freira imaculada daquele hemiciclo, leva-me a pedir ao Parlamento que lhe erija um altar onde a pura ficará para a posteridade... de luto.


         - O filme O Corvo Branco conta o percurso pessoal e artístico de Rudolph Nureyev. E fá-lo com elegância, autoridade, conhecimento e sensibilidade. Ali não há lugar para fofoquices nem condenações populares. Os factos são factos e como tal devem ser narrados apoiados na verdade e conhecimento de uma época, de um regime, das personagens que o encheram, e tornaram, portanto, possível o destaque daquele que queriam ocultar e anular. Rudi tinha um sonho e dele não se desviou até ao fim quando morre em Paris a cidade que lhe abriu as portas ao mundo. Ralph Fiennes o realizador, é fiel à linha que o destino se encarregou de esquiçar na vida da sua personagem e pareceu-me que o objectivo foi ir por ali fora de tal modo que nenhum actor se distingue, sendo o equilíbrio a arte primeira da obra. Talvez tenha sido por isso que o filme me tocou tanto, pôs-me a pensar no destino de milhões de almas, submetidas a um regime hediondo, bárbaro que jogou com os trabalhadores e as suas ambições pequenas no contexto de uma época desgraçada na ex-URSS. Do ponto de vista da arte, o período comunista foi nulo, porque os artistas tinham de estar filiados no partido ou antes arregimentados, para conseguirem alguma notoriedade. Centenas de pintores, escultores, escritores, músicos, artistas foram atirados para os Gulags de triste memória, reduzidos a um mundo comandado por um homem rude e primário chamado Kruschev, defendido pelo exército e pelo KGB que tudo controlava. Alguns episódios ali contados como os de Clara Saint, Malraux são meus conhecidos e pude por isso ver como são expostos sem desvio da verdade. Eu acrescento mais esta nota que não vem no filme, mas dá a dimensão humana de Nureyev. É contada por Gore Vidal em Palimpseste que li na versão francesa. O escritor americano viveu alguns anos em Itália, Ravello, e Nureyev numa ilha ao largo de Positano, praticamente um diante do outro, as águas de permeio. Conta Vidal com o desassombro que lhe é característico, uma visita que o bailarino lhe faz pouco tempo antes de falecer, chegado de  barcaça, “son corps rongé par le sida”. Decorria Agosto, antes da morte, em Paris. “Il s´allongea sur le sofa, exténué, un verre de vin blanc à la main, ne prononçant pas un seule mot jusqu´a ce que nous abordions des derniers ragots de la danse. Peter Martins, tuer sa femme. (deviam falar em inglês língua em que Rudi não era mestre, daí este tipo de linguagem ao jeito de encriptação) Non! Triste. Je l´ai vu à seize ans. En classe. Une grosse bite, jusque-lá. Tenté ma chance. Erik Bruhn dit. “Non. Trop jeune. Toi aller en prison.” Rudi sourit, le visage ravagé mais encore superbe, comme celui d´un roi tatar...”