Segunda,
1 de Julho.
Cortaram-lhes
tudo: gás, electricidade, água, permissão de saírem dos seus apartamentos;
começaram, inclusive, a demolir o prédio para os aterrorizar, mas os bravos
velhotes, de boa cepa, coragem para dar e vender aos filhos e a todos os
fracos, resistem às invectivas do fascista presidente de câmara de Viana do
Castelo. Tudo isto num país que se diz democrático e republicano. Quando sair O Rés-do-Chão de Madame Juju, lerão uma
cena muito parecida que denuncia o que são as nossas queridas câmaras e os
xerifes que as tomam de assalto, e dizem-se mais próximos dos cidadãos que os
eleitos para o Parlamento.
- Com a autoridade, o trabalho e o
exemplo que lhe reconheço, Joana Marques Vidal disse que “há redes a capturarem
o Estado”. Quem melhor que ela para fazer uma acusação de tal gravidade, ela
que conhece os meandros sinistros da corrupção no Estado, nas autarquias, nas
juntas de freguesia, e por aí fora. O corredor está empestado de ratos e
ratazanas digladiando-se entre si e não deixando amesendar-se o outsider moralizador.
- Neste país pacífico, desenvolvido,
sem pobreza, governado por gente honesta e culta, desprendida e fixada no bem
comum, não se compreende como trabalhadores de todas as áreas desdigam com
greves e manifestações, o panorama maravilhoso do Portugal democrático e
europeu apregoado por aqueles que o governam. Raios partam os médicos e
enfermeiros que hoje iniciaram mais uma greve!
- Ontem, ao balcão da bilheteira, com
a rapariga que me atendeu, tive este excelente diálogo. Depois de me ter
vendido o bilhete de ingresso no cinema, perguntou:
- Com os quatrocentos anos que diz
ter, deve ter carro?
- Tenho, mas não o uso quando possuo
bons transportes públicos. Por que pergunta?
- Para lhe dar a gratuitidade no
parque de estacionamento.
- Pois, mas eu trato do Planeta melhor
que os seus amigos que saem para a rua em manifestações de moda e não de
convicção a favor da Terra. Quando lhe tirarem os concertos, os futebóis, as
roupas de marca compradas e abandonadas todos os anos, os gadgets e outras porcarias de uma inutilidade diabólica, aí quero
ver como vão reagir.
- Tem razão. Eu tenho 22 anos e é
verdade isso que diz. Os meus amigos estão-se nas tintas para tudo.
Aproxima-se,
entretanto, a colega do lado, eufórica:
- Eu votei pela primeira vez nestas
eleições para a Europa. E estou de acordo com o que diz a minha amiga. A maior
parte dos meus amigos também não se interessa por nada, está-se nas tintas para
tudo.
- Porque talvez sempre lhes deram tudo de mão
beijada – disse num sorriso e acrescentei: temos de estar atentos em
permanência, nada está consolidado na vida. Olhem para mim, com quatrocentos
anos não páro de pregar. Prego em todo o lado.
Um miúdo com um buço já desenhado, ele
a mãe que entretanto chegaram e escutavam nas minhas costas a conversa, abriu
muito os olhos e olhou-me num misto de incerteza e admiração. A rapariga atirou
em jeito de despedida:
- Continue a pregar. E riu-se muito.
- Quando cheguei a Sete Rios ou a Jardim Zoológico os senhores do metro
que decidam, deparei com a gare completamente atulhada de gente. Indaguei o que
se passava. Disseram-me que aquele milhar de pessoas exibindo na lapela um cartão
com a frase “O amor nunca acaba”, vinha de um congresso internacional de testemunhas
de Jeová. Vê-las e ouvi-las falar e actuar no cais, cheias de delicadeza e amor
ao próximo, apetece juntar-nos a elas. O pior foi quando o comboio parou: o
atropelo, os empurrões, os gritos, o salve-se-quem-puder, cada um por si e Deus
por todos foi dramático. A viagem até casa, fi-la a disfarçar com o lenço os inúmeros
odores de raças que expeliam cheiros horríveis de quem não conhece água há alguns dias.