Terça,
4.
Se
nos apaixonamos por um físico e o resto não vem atrás, ficamos condenados ao
inferno.
- Agustina Bessa Luís faleceu com 96
anos. Tive com ela encontros estranhos quando habitou num prédio cinzento perto
da Academia das Ciências e eu na Rua de S. Marçal onde vivi até 1999. Mas isso
já contei algures nestas páginas. Que repouse em paz e nós, pelo tempo que nos
for concedido por cá andarmos, não nos apartemos da sua formidável obra
literária. Eu li quase tudo o que ela escreveu, e passei até um tempo ganzado
nela. Há magia, ilusionismo, loucura, dependência nos seus romances que o leitor
à medida que por eles avança, o faz de coração nas mãos. O imprevisível é o
desnorte que dá consistência à originalidade da sua obra.
- Ontem fui conhecer um modestíssimo
restaurante encavalitado na Travessa do Ferragial. Almocei com o João
Corregedor depois de uma discussão violenta na Brasileira sobre política e o
seu devoto António Costa. O meu amigo é tão sectário que tive vontade de o
deixar a falar sozinho. Só a estima que tenho por ele, permitiu que não tivesse
debandado. Bref. Abancámos no terraço
com vista larga sobre o Tejo e o “deserto” da margem Sul ponteado lá longe no lençol
branco da neblina, Setúbal. O restaurante pertence à irmandade religiosa e tem
por padroeira Nossa Senhora do Bom Conselho. A
comida tem a mesma simplicidade e ternura da que eu confecciono aqui em
casa. Do género: arroz de cenoura com jaquinzinho fritos, almôndegas com
batatinha assada, peixe cozido com legumes, bacalhau no forno com molho branco,
pataniscas de bacalhau e assim. Tudo elementarmente cozinhado, sem aditivos nem
fantasias que nos destroem o fígado e o estômago. A sala interior, parece um
lugar para acudir aos esfomeados (de resto as irmãs oferecem 20 refeições a
sem-abrigos por dia), mas tudo muito asseado e simpático. O preço é dos anos
setenta. O atendimento lindíssimo com o sorriso luminoso de uma empregada negra
a banhar-nos.
- Todavia, esta rua, enquanto o João
falava, eu viajava para os anos Setenta e Oitenta. Ela é-me muito querida,
porque muitas noites, engolido o jantar no Alfaia, descia com o pintor Ferofe,
ao seu atelier umas portas mais adiante. Aí ficámos a beber até muito tarde,
conversando enquanto ele pintava e outros amigos apareciam. O fotógrafo Luís
Madeira, já falecido, assim como o Guilherme, o Calhau e a mulher, também já
desaparecidos, e tantos outros. Depois, um dia, sem eu perceber porquê, o
Ferofe de quem eu gostava muito, decidiu partir para Londres de onde (julgo)
nunca mais tornou. Tenho uma tela que ele me ofereceu, uma abstracção branca
que se perde numa espécie de sonho evasivo.