sábado, fevereiro 11, 2017

Sábado, 11.
Virgílio Domingues pediu-me para o acompanhar ao Palácio do Correio Velho onde estão duas peças suas a leilão. Trata-se de dois gessos patinados de 1966 e 1967, uma figura feminina deitada e mulher estendida segurando o filho ao ombro, de que tem memória  os ter dado a uma amiga que agora se quer desfazer deles. Ante as esculturas, barafustou, quis que o dono da galeria as retirasse do conjunto da arrematação, por serem “um trabalho sem interesse, uma merda”. Pessoalmente, aconselhei-o a não o fazer e quando me pediu opinião disse-lhe que preferia a mulher deitada. Deu-me razão: “Apesar de tudo, essa é melhor que a outra, mas são ambas muito más. Era muito novo quando as fiz.”  Separámo-nos ali. Ele tomou o 28 para a Lapa e eu fui ter com o Guilherme a quem mostrei o catálogo do Leilão de Antiguidades Arte Moderna e Contemporânea. O meu amigo, barafustou: “O Virgílio é maluco!Vou lá ao Palácio dizer para que não sigam a sua opinião. Isto é uma maravilha, é muito bom.” O Carlos Soares (“o irmão”) que estava com ele era da mesma opinião. 

         - Com este desci o Chiado. Conheço pouca gente com tantos conhecimentos sobre História de Arte como este amigo encantador. Pelo caminho, parávamos para eu receber lições de história, olhando as cantarias das fachadas de prédios e igrejas ornamentadas em mármore de Carrara que “nos séculos XVIII e XIX chegava a Portugal em placas para serem trabalhadas”. Diante da igreja de Nossa Senhora da Encarnação, com aquela preciosidade central na fachada, de um barroco tardio, frontão de uma delicadeza excepcional, trabalhado em pedra de Carrara por artífices geniais, inicialmente feita para a primitiva igreja, situada, segundo Carlos, um pouco mais ao lado, mereceu-nos um longo e contemplativo olhar. Assim como as pedras da calçada, onde o calcário impera à mistura com o lioz que orna a calçada portuguesa. Explica-me o “irmão” que não há pedra fácil de trabalhar, todas são difíceis, e a pancada seca do artificie é fundamental na perfeição do desenho que se pretende construir.  

         - O grande Virgílio, ontem, no Príncipe, saiu-se com alguns soberbos golpes de humor. Exemplo, este referindo-se a mim: “Tu és agradavelmente incorrigível!” Este outro, na direcção de um grupo de bailarinos sensíveis na mesa em frente, uns seis, pelos 17, 18 anos: “Aqueles cheirou-lhes a salsichas (o prato do dia) por isso apareceram.”

         - Há pouco, ao telefone, grande conversa com o meu amigo escultor. Eu e todos os amigos comuns, incitam-no a voltar ao trabalho, mas ele languesce argumentando com a idade e a rotina que a arte exige. Eu disse: “Como trabalhas a pedra, se quiseres, tens aqui na quinta espaço suficiente. Instala-te aí e faz pela vida. Oh, agradeço-te, comovido, mas já viste com 84 anos!... Estás em muita boa idade para recomeçar. Um artista não é um desses banqueiros inchados ou um funcionário público que aspira à reforma.” Riu-se muito e disse que ia pensar no assunto. Quando ia a desligar, voltou à carga com as esculturas do Correio Velho. Diz que vai lá voltar para “partir aquilo tudo”. Eu renovei a minha impressão do valor artístico das peças e disse-lhe que me fizeram lembrar a obra de Henri Moore. "Estás a ver! Tens toda a razão porque quando era novo vivia a devorar tudo dele. Mais uma razão para dar cabo daquela merda!”

         - No Brasil a miséria e a violência andam associadas. A Ordem e Progresso que são a divisa do país, uma fantasia. Há mais de uma semana que os polícias do Estado do Espírito Santo, entraram em greve por condições de trabalho e, sobretudo, como é do costume, aumento do salário. Os criminosos aproveitaram as reivindicações dos homens encarregados da segurança e ocuparam-lhes o espaço. Tem sido uma carnificina. Passa de uma centena o número de mortos. Matar por lá, é como beber uma xerimbinha.

         - Não só lá. Também em Angola a dependência do futebol trouxe a desgraça. Pelo menos 17 pessoas foram mortas e mais de 60 ficaram feridas, quando tentavam entrar num campo de futebol para assistir ao jogo inaugural do Girabola (não me perguntem o que é). O que sei é que esta praga semeia com muita frequência a morte e a tragédia. Ninguém põe cobro a isto. Depois da desgraça vem a comoção hipócrita e a seguir o espectáculo continua.


         - Chove e faz frio. Quando há duas semanas disse que já não acendia mais as lareiras, enganei-me. Tenho tido a do salão todo o dia a queimar e a casa nem por isso aqueceu. Não posso fazer nada no campo. Anteontem, com um dia soberbo, ainda consegui podar o que resta do campo de vinhedo. Percebi que as videiras se podam como as hortências e nisso já sou mestre.