Quarta,
15.
Em
verdade é raro poder gozar os dias do resto da minha vida em tranquilidade. Normalmente
vivo demasiadamente programado, sem espaços para o vazio, deixando o tic-tac das
horas entrar neles, liquefazer-se depois de algum modo numa espécie de alegria
breve ou oração subtraída ao silêncio. Só quando o cansaço beatífico entra em
mim, experimento a leve sensação de gozar o tempo em plenitude. Se por azar
tenho em fundo um salmo de Bach e posso afundar-me no sofá do salão, pegar num
livro para o largar logo a seguir, olhar os quadros que estão por todo o lado a
espiar-me os gestos, ouvir um novo chilreio de pássaro, sentir os minutos
raspar na minha pele, libertar hossanas de glória ao paraíso onde escolhi viver,
contra os fantasmas e suas orgias nocturnas, só então, nesses dias de paz e
incerteza, gravados no silêncio que não me diz o que aí vem de tributo ao
trabalho minuciosamente feito, palavra a palavra, arrancado à solidão amarga onde
por vezes não pinga uma nota humana...