terça-feira, março 30, 2021

Terça, 30.

Há qualquer coisa que se vai modificando em mim, como se o tempo constitui-se um estorvo e se entrepusesse entre a melopeia dos anos e o presente com o instável futuro a espreitar para fora da esperança. Há um cansaço, uma agonia branda a tombar para o lado da indiferença, um murmúrio esgotado que se rende à mais pequena contrariedade, um sopro fluido que tece nas horas um impressionante grito de revolta e indiferença e desmaio e lassitude. Abraço a decadência com alguma altivez, ciente do percurso que finda do outro lado do rio que corre abrejado e perigoso. Tenho tendência a deixar para trás tudo o que me obriga a empenhar-me: uma ordem, um pensamento, um simples gesto, o pagamento da água e luz, todos esses acessíveis e rotineiros gestos me alongam a empreender a obrigação. Parece que este mundo já não me pertence e eu estou a mais nele, não encontrando refúgio em parte alguma, não o sentindo meu, partido em mil pedaços onde vejo com apatia os cacos do que fui. Até as árvores, o azul profundo do céu, o horizonte dos fins de tarde, o silêncio que se expande aos limites da eternidade, me alucina, me demora a entrever, pasmado, absorto, pusilânime e lasso... lasso... lasso...