terça-feira, março 02, 2021

Terça, 2. 

O ex-Presidente Nicolas Sarkosy foi condenado por corrupção e tráfico de influência a três anos de prisão sendo um efetivo, os outros dois em domicílio. O caso arrastou-se desde 2014 quando se soube de pagamentos da multimilionária dona da L´Oréal Liliane Bettencourt para financiar a campanha eleitoral de sua excelência. Recordo que este senhor, assim que foi eleito, sentindo-se dono da França, aumentou o seu salário para o dobro. Mais: é com ele que começa o descalabro na política, a vulgaridade, o desrespeito das pessoas, a aldrabice e a impunidade; ele antecipa a chegada de Trump. Foi também com ele no poder que a Líbia depois de ter sido endeusada pelo pacóvio, o seu Presidente acaba assassinado. É um homem complexado, para quem as honras e, sobretudo, a riqueza subiram-lhe à cabeça e pensava chegavam para anular as suas origens magrebinas. 

         - Já não volto a Lisboa de automóvel. Quando antes, saindo daqui de casa em 20/25 minutos estava no Amoreiras, hoje levei 35. Muito trânsito, muita gente por todo o lado, a cidade em retoma nítida contra o que o Governo decretou. Fui ao lado do buraco do João levantar as radiografias ao joelho, segui depois para o laboratório a fazer uma tac ao maxilar superior e inferior, de seguida ao Centro de Saúde onde não pude estacionar não obstante várias tentativas até ao Jardim da Estrela; tudo em vão tendo voltado para trás e ido ao Vitta Roma comprar o jantar e meter pé no acelerador de retorno ao meu convento, para junto das minhas queridas zuckerberguianas. Por lá deixei 140 euros, fora o que irei despender no tratamento integral dos dentes. Bref. A crédito do dia saltimbanco, o estímulo cognitivo que tudo isto provoca tendo em conta os meses de confinamento. 

         - Ontem ao serão, estando madraço, após a entrevista à maestrina Joana Carneiro com algum interesse, fui espreitar outro guru cá do sítio que muito prezo, o arquitecto Siza Vieira. Não achei a entrevista e vi a do Herman José. Vi é uma forma de falar: saltei sobre ela como o diabo sobre a cruz. Que desinteressante! Que vulgaridade! Que falso humor que encobre tanta pobreza franciscana! Vou ali buscar uma vez mais Manuel Vilas e o seu Ordesa (a editora deu-lhe o subtítulo Em tudo havia beleza saído de uma passagem do romance) para o parafrasear: “Que Deus dê uma boa dose de miséria a todos esses pirosos que dizem que o dinheiro não traz a felicidade.” 

         - Nunca dormi tanto e com tanta paixão. Desde aquela noite de insónia, parece que o meu cérebro e corpo não param de se desforrar. Durmo desalmadamente. Adoro a minha cama, o edredão de penas de ganso onde me enrolo, o quarto silencioso onde todos os fantasmas desembocam, assim como os anjos e os arcanjos, uma comunidade que vela por mim, sem ruído, como bênção celestial, um modo silencioso de me embalar. Assim que me afago entre lençóis - depois dos gritinhos que os arrepios de frio provocam -, a minha tensão deve descer abruptamente (ontem medi-a antes de subir: 13-6,5) que em minutos passo-me para o outro lado onde a vida reinventa-se e o tempo imobiliza-se. Às vezes luto contra essa urgência biológica, quero ficar a escutar o murmúrio do silêncio que se despega dos livros que estão em meu redor, companheiros queridos, a quem me amparo nos momentos difíceis, nas horas de descrença. Fecho um olho e pestana o outro, numa luta pela sobrevivência do dia que teima em se irmanar à noite profunda. Não vejo o firmamento inundado de miríades de estrelas, não espreito a Lua que tem por hábito ficar estática à minha janela, porque durmo de portadas cerradas, no escuro-claro do interior onde o ciclorama da comédia diurna acontece por etapas nos sonhos que o reproduzem. Durmo no vagar apressado das horas e quando acordo do longo lençol quedo da noite, um frisson de encanto e felicidade obriga-me a um suspiro de conforto e volto a virar-me para o outro lado e readormeço. Passadas mais de oito horas, não obstante o corpo me pedir que não saia onde se sente como num céu de penas perdoadas, começo a ouvir o miar dos irmãos Black que dormem por baixo, no telheiro. Mesmo eles são ternos na fome que nunca os larga. Usam expressões felinas de meiguice, a pedir docemente que desça a dar-lhes os cagalhotos de que tanto gostam. Só então, depois das preces matutinas, me ergo daquele vale de sussurros lucífugos para me reinventar nos picos translúcidos da manhã que desdobra o seu rastro luminoso e se acomoda em mim e eu a saúdo genuflexo para receber a sua bênção...