segunda-feira, março 15, 2021

Segunda, 15.

Talvez por ter dormido demais, comecei o dia sonâmbulo, sem energia, murcho. Às nove e meia veio aí o John e levou-me na sua carripana a Setúbal. Apostou que me há-de pôr a parabólica a funcionar, sabendo que eu não gosto do trabalho das nossas televisões. Tudo em vão. As poucas lojas encontradas ou não percebem do assunto ou deixaram de comercializar o produto. Valeu, todavia, a deambulação por uma cidade que não conhecia, cercada de velharia arquitectural, ruas, sombrias rectaguardas, um mundo fechado nas traseiras de outro mundo onde nenhuma alma se salva. Andámos toda a manhã nisto. Depois, rente à uma da tarde, ficámos a fazer tempo à conversa dentro do carro. Ele é um grande conversador, as histórias pegam-se umas nas outras, o presente evapora-se, torna-se irreal, submetesse à memória que por sua vez reinventa o passado tornando-o outro presente. 

         - Houve uma espécie de largada com o de confinamento. As criaturas pareciam figuras de almanaque experimentando as ruas como se acabassem de ser construídas. Na televisão não houve protectora dos meninos que não viesse carpir, muito emproada,  o seu futuro encharcado de apreensões e atrasos devido aos dois meses fechados em casa. Constroem um mundo fantasmagórico, feito de atrasos e dores psicológicas, dificilmente reabilitadoras, onde as crianças passarão a viver subjugadas às memórias de um tempo de reclusão que traduz mais a inconformidade da família que a dos miúdos. Os pais não estavam preparados para os aturar a tempo inteiro, não só aos filhos, como um ao outro. Daí ter subido a violência doméstica, as discussões, o confronto entre casais, a descoberta que o namoro apressado não deu para aprofundar, o sexo na dianteira e depois logo se vê se dá, o trik trik trik; ai que bom, que bom que durou um ou dois anos e murchou de vez. Todas estas psicólogas, pomposamente produzidas para a televisão, botam ideias a exemplo das meninas do BE, imitam-lhes os tiques, e são por natureza, naturalmente, imprescindíveis ao país angustiado, stressado, morto. A mim, não querendo ser desmancha de confinamento, pelo que vejo, não tarda estará tudo entre muros a folhear de novo os mestres da psicopatologia da vida quotidiana. 

         - Carpe diem Helder, carpe