quinta-feira, março 11, 2021

Quinta, 11.

Tenho mantido à mão de consultar o romance de Manuel Vilas, Ordesa, não o tendo arrumado de imediato na biblioteca de cima. A história é não só actual como abrange quatro gerações de uma família que sofria do mal dos tempos presentes: a incomunicabilidade. Com uma particularidade: apesar dessa característica comum a milhares de seres humanos, uma espécie de interregno, entre o tempo e o lugar, leva Vilas a reconstruir o passado tornando-o palpável num país chamado Espanha. Através de uma obra desempoeirada e corajosa, o autor reinventa o diálogo com os mortos de forma a dar sentido à sua existência e tentar compreender o que obstou em vida dos pais e avós a esse estreitamento que desaguava, contudo, no amor profundo entre pai e filho. Setenta anos interpuseram-se e hoje o escritor em quatrocentos páginas de um texto vivo, criativo, corajoso, chama à coadura não apenas a manta familiar como a Espanha enquanto cúmplice do destino colectivo e do seu em particular. Como se não pudéssemos escapar ao lugar e às raízes que nos deram os alicerces de identidade, e neles sepultam também desgraças e alegrias, sofrimentos grémios e íntimos silêncios. A escrita de Manuel Vilas, sem entrar no murmúrio de Proust de que vi proximidade em Frederico Pereira no seu fabuloso livro A Lição do Sonâmbulo, penetra profundamente na pele da recordação para a trazer à luz incandescente dos dias. Ordesa é o lugar onde tudo começou e onde tudo ficará sepultado. Situa-se num vale pirenaico irmanado com a montanha chamada Monte Perdido. Toda a narrativa dimana daí, como se um fio condutor orientasse as personagens que povoaram a vida do escritor, particularmente o pai, vendedor ambulante de tecidos, que mais tarde se separaria da mulher e dos seus dois filhos. Era um homem fechado, mas capaz de expansão fora da família, secreto e reservado, que nunca teve um afecto para os filhos. “Não me dizendo quem era, o meu pai estava a forjar este livro.” (pág. 217) Por isso esta obra comovente, descarnada e luminosa, torneia à volta da descoberta do outro, de forma a dar sentido à vida que sobrou dos seus progenitores. Diria que não se trata de um romance, porque nela não há ficção – autor e narrador, pai e filho, fundem-se, confrontam-se de algum modo, dialogam atravessadamente na busca da ressurreição que a memória enquanto força de verdade comovente e poética, permite. Todas as debilidades humanas, os devaneios que a vaidade e a sobranceria enquanto máscaras escondem, forjando a liberdade e a identidade de cada um, estão neste livro e são por assim dizer não apenas o relato de uma perda como a reinvenção do amor. Livro repositório de uma parte de todos nós, símbolo do amor e das mágoas, do que ficou por dizer, da solidão e da continuidade da vida. Manuel Vilas selou com os seus leitores um pacto de verdade, de ousadia, de beleza e encanto. A moderna literatura espanhola reabre provavelmente a escola dos grandes autores, deixando para trás o lixo que se acumula nos armazéns das editoras. A Arte está, enfim, de volta.    

Façam confiança em mim : leiam este livro.  

         - O Governo vai nomear uma task force (eles deviam preocupar-se com o uso da língua portuguesa; mas, enfim, não é Costa o autor da “bazuca”?!) de cientistas comportamentais (imagine-se!) que o ajudarão a saber transmitir mensagens ao povo no combate à pandemia. Surpreendidos, caros leitores? Eu nem um pouco. Que este governo é formado por analfabetos, já todos sabíamos; mas que não soubessem articular meia dúzia de palavras em português de forma a fazerem-se compreender, é um triste espanto. Mas isto cheira-me a esturro. Deve ser uma forma moderna socialista de controlar e orientar as ovelhas, a exemplo do que faz Xi Xinping ping ping com os uigures, uma minoria muçulmana que fala o turco, privada dos direitos humanos, encurralada no noroeste da China, na província de Xianjiang. Em vez de darem ensino correcto e cultura ao povo, atiram-lhe com métodos pidescos de controlo e sobrevivência no poder. Em Portugal, no Portugal democrático, há um entendimento político para que o povo se realize na mediocridade de modo a que a política e os políticos imperem magnanimamente. Basta ver o que oferecem as noites, dias, meses, anos a manjedoura da televisão. Tudo aquilo é elaborado por baixo, cheira ao bodum que emana dos apresentadores chicoteados pelos governantes. Querem-nos felizes porque a felicidade não tem história, não traz que pensar, é admitida e condimentada pelo egoísmo, dando a sensação que eles tomam contam de nós. No tempo do fascismo, muitos destes que nos pastoreiam, diziam que o futebol, a Igreja, o fado e os concursos de televisão e telenovelas, eram o ópio do povo, a sua alienação. E agora?  

         - Ontem e hoje, bom trabalho no romance: duas páginas com algum esforço. Aparei a relva. A Piedade esteve aí só para mudar a cama devido a dores num braço. Há dois dias que não saio, empregando o tempo no muito que há sempre aqui para fazer. Falei ao Francis de novo, Filipe, António, Carmo Pólvora, Fr. Hélcio. Amanhã vou a Lisboa ao dentista e domingo ao oftalmologista. Que virote!