terça-feira, abril 30, 2024

Terça, 30.

Desafiado pelo João para ir à Brasileira, tendo chegado um pouco antes da hora aprazada, abri o computador que nunca me larga ou eu a ele, busco o link do romance e não o encontro – tinha desaparecido do ecrã. Fiquei lívido, senti o sangue descer por mim abaixo e permaneci paralisado de horror. A coisa foi tal, que uma das funcionárias se aproximou a perguntar se estava bem. Fui mais tarde ao gabinete técnico do Corte Inglês, mas o empregado necessitava de saber o rótulo que havia dado ao link. Ora, como o título do romance tem vindo a mudar ao longo da escrita, fiquei baralhado e adiantei “Ana Boavida”. Em vão. Enervamento. Contristado de ter perdido três anos de trabalho. Contudo, o funcionário, ensinou-me como, “eventualmente”, poderia recuperar o ficheiro. Volto a casa de urgência e atiro-me à descoberta de um mundo para mim fascinante, mas inacessível. Acontece que o desespero aguça o engenho. E eis que a dada altura, Ana Boavida vem ao meu encontro de sorriso malicioso: “Aqui estou, camarada.” 

         - Domingo, entrando eu na igreja dos Navegantes, em Setúbal, encontrei o espaço quase preenchido. Dentro de minutos deveria começar a missa das nove e de celebrante nada. Eis se não quando vejo passar perto de mim vindo da rua, um homem alto, negro, magro e ligeiramente curvado decerto devido à altura, aparentando quarenta anos. Ele escapa-se pela ala direita do templo, sobe o estrado do altar e desaparece pela esquerda. Volta daí a minutos, envergando uma sobrepeliz branca, e dá início ao ofício religioso. De súbito, interrompe a oração e eclipsa-se para o sítio de onde tinha chegado – a sacristia. Os fiéis olham-se sem perceber o que se passa. Esperamos, com efeito, um bom bocado. De seguida, reaparece desta vez com a casula dourada e branca sobre a veste que tínhamos visto. O cabo-verdiano, tinha-se esquecido de se paramentar a rigor. Os furos aos cânones não se ficaram por aqui. Antes do Santos, ele faz um movimento demasiado brusco e a patena bate ruidosamente no cálice. Um pouco depois, abandona o altar com um papel quadrado na mão para pedir junto de uma assistente que lhe decifre o que lá está escrito. Dito isto, a homília foi simples e bem construída. É a primeira vez que assisto à missa celebrada por um africano – foi diferente e nenhum ponto de contacto com o rigor habitual. A sua inocência, foi ao ponto de contar que em Cabo Verde nunca tinha visto uma vinha e ele e outro padre da mesma cor tinham visitado uma vinha perto da cidade de forma a encontrarem paralelismo com a “vinha” do Senhor. 

         - Há, de facto, uma fúria de revolta na Natureza, os sinais estão por todo o lado e são cada vez mais assustadores. Desta vez coube à Tanzânia ser atingida por chuvas diluvianas que arrasaram cidades inteiras e vilas isoladas. Se já havia pobreza, esta redobrou fazendo mais pobres e infelizes os já de si tristes africanos.  

         - Um pormenor que diz tudo do estado da democracia. Enquanto nas ruas nunca se viu tanto povo unido a festejar os 50 anos da Revolução, no Parlamento assistiu-se à luta, desunião, disputa dos senhores deputados. Uma vergonha. 

         - Tenho dias que pareço viver entre os mortos que respeito e venero – feliz.