terça-feira, março 08, 2022

Terça, 8.

Farto de andar numa correria com a vida às costas, ontem, estacionei numa mesa da Confeitaria Nacional, junto à janela que dá para a Praça da Figueira, e entreguei-me  ao prazer de um excelente almoço num quadro à moda antiga, toalhas postas à minha frente, guardanapo de tecido e decoração condizente. A meu lado, a dada altura, sentou-se um casal de estrangeiros de meia-idade e logo pegaram conversa comigo. O meu desejo era comer só, sentindo os arrepios de felicidade e harmonia tão arredios depois da invasão da Ucrânia, mas outro remédio não tive que desenferrujar o meu inglês (eles eram irlandeses). Apesar disso, instantes quedos, luminosos, banhados daquele mistério que reveste a vida dos impulsos que alimentam o ânimo e desfazem as incertezas. 

         - Admiro e vergo-me de respeito e simpatia por aqueles milhares de russos que, enfrentando a cadeia e a violência do regime, saem à rua em manifestações de protesto contra a ordem do ditador em fazer a guerra à Ucrânia, não com o seu escudo físico, redondo e anafado, mas com o dos jovens rapazes inocentes. O mesmo sentimento, que me levou a revoltar-me contra o fascismo, quando comunistas e homens de esquerda, saíam para protestar contra a ditadura de Salazar e Caetano. 

         - O assalto a Kiev está cada dia mais próximo. O nosso triste e saudoso PCP saiu a terreiro pela voz cansada do seu secretário-geral, relembrado que o regime do Sr. Putin é capitalista, que a invasão foi má aposta política, o Presidente Zelensky nazi, mas... a culpa foi dos americanos que fizeram o cerco à Rússia através da NATO. Tudo isto é tétrico, mas é a imagem de marca dos comunistas que se orgulham de fazer 100 anos de história. Quem diria! Com a modernidade das suas posições políticas... Mais tarde detalharei este modo de fazer política que dá indispensabilidade à leitura de dois campos radicais: os regimes de um homem só e as democracias onde todos convergem.  

         - Outro dia estive com Fr. Hélcio. Ponto de situação das nossas vidas e do mundo presente. A dada altura, falando de saúde, ele conta-me que foi ao Hospital da Luz, em Benfica, fazer um check-up de rotina. Saiu de lá com um problema cardíaco e uma catarata. Não sentindo nada daquilo que os exames relatavam e, sobretudo, como lhe disseram a urgência em operar à visão obscurecida, foi consultar outro médico. Este aconselhou-o a não dar atenção à ganância do hospital porque... não tinha nada no coração nem na vista. Isto remete-me para o meu próprio caso, na unidade de Setúbal. Quando há um ano dei um jeito ao serrar uma árvore e fiquei com dores insuportáveis na região lombar, os meus amigos levaram-me de urgência ao Hospital da Luz. Fui prontamente atendido, justiça seja feita. A médica espanhola que me ouviu queixar não só dos rins como do joelho, foi lesta na resposta: “Uma coisa de cada vez. Agora vamos tratar dessa dor, a do joelho marca nova consulta.” Entretanto desembolsei 120 euros! É esta a moda de medicina escroque que agora se pratica nos privados. No hospital dos SAMS, aconteceu a mesma coisa. 

         - Fui cortar o cabelo. Como se sabe o barbeiro é uma espécie de consultor sentimental e banha da cobra. Segundo ele, o Exército anda a contactar os antigos oficiais na reforma (ele diz que não é bem reforma) para os pôr de alerta ao que pode surgir da intervenção da Rússia; que está contra Zelensky por obrigar as pessoas a combater pelo país e acrescenta: “Eu! Era o que faltava! Eu defendo os meus filhos e a minha família os outros que se lixem!” Entre outros mimos egoístas do género. 

         - O frio voltou. Para a serras do Norte, caiu neve. Aqui tenho a lareira acesa e como tosquiei o cabelo, o gorro de lã que costumo pôr quando vou ao estrangeiro no Inverno. Contudo, uma língua de sol frio estira-se na mesa onde trabalho acariciando as mãos que teclam estes textos. Um rumor de vento ouve-se ao longe na tarde calma e serena.