domingo, março 27, 2022

Domingo, 27.

O perdão é o sentimento mais nobre do ser humano; e quando a absolvição é feita sem recurso à dor da sua causa, é fenda de luz que inunda os corações. Assim aconteceu com um amigo da minha (nossa) adolescência tumultuosa, livre como poucos a tiveram, disponível para conhecer e praticar tudo o que os meus delírios impunham e a sofreguidão da idade exigia. Não me arrependo de nada, não sinto a mínima falta ou pecado, por tudo o que livremente fiz, sofri, vivi, pratiquei com paixão, até ao abandono de mim pelas horas tardias das noites claras, que se fundiam nas madrugadas banhadas do cansaço do amor experimentado e consolado até ao apaziguamento do corpo e da alma. Este amigo, soube por outro, que eu passava por um momento difícil com morte da Maria Luiza e logo me telefonou como se os anos de silêncio se tivessem eclipsado e nos tivéssemos despedido na véspera. Todas as palavras trocadas eram os sons que a amizade reconhece e conforta. Com a singular retoma do que ficou interrompido. 

         - Assim, ontem, também a Maria José me telefonou a dar-me os sentimentos, acrescentando não ser saudável ficar nesta altura só. Primeiro, ofereceu-se para passarmos uns dias, depois ante a recusa, “pelo menos vamos almoçar juntos”. Fomos. Almoçámos na esplanada de um restaurante no castelo e ficámos ao sol a conversar por umas duas horas. De seguida, convidou-me para ir conhecer o seu novo atelier na Quinta de Alcube, perdida na serra, entre vinha e oliveiras, um lugar que temos de palmilhar por curvas e contracurvas, ladeiras perigosas e caminhos de terra batida com árvores caducas a dividir o circuito da estrada. Chegados ao fim de meia hora de viagem, somos confrontados com esta inquietação: “Como é possível encontrar aqui tanta gente!” O atelier da minha amiga, escultora e ceramista, fica em contrabaixo do edifício-mãe, umas quatro divisões por onde serpenteia uma atmosfera de serenidade e moldes de ilustres figuras que nos olham com espanto. Uma desordem estudada e simpática acolhe-nos sem nos solicitar o olhar atento, como se toda a obra da artista fosse coisa inacabada e, por isso, a merecer apenas um relâmpago de passagem. O silêncio e as clareiras de sol, com arbustos e árvores a tocar os telhados baixos, apressam-nos o passo para o exterior onde o silêncio é atravessado pelo vento manso da tarde já um tudo nada cálida. Fico aí a estender o olhar que toca todas as membranas de verdes, como se salmodiasse um hino íntimo saído daquela natureza virgem, parada, hirta, por entre troncos grossos e folhagem de cambiantes inebriantes que odores de vinho servido mais acima ali redopiam. Quero lá ir espreitar o tumulto de vozes, a roncaria dos motores mais abaixo, os passos no caminho atapetado de folhas secas; mas não despego o olhar do horizonte fechado lá ao fundo num esplendor de luz faiscada de raios de sol de uma intensidade estranha e bela. Não é a Primavera que chegou, é outra estação que se fixou no céu e nos encandeia e deslumbra porque não se parece com nenhuma outra estação do ano. De súbito enormes clareiras de silêncio. Vou-me por ele, banho-me nas suas ondas, respiro os aromas da terra que sobem do fundo dos alçapões onde corre a vida que ninguém ousa vislumbrar. Há muito que não sei da minha amiga, sinto-me ali só, reduzido à insignificância de um insecto sem asas, que rasteja no chão de solo meio arenoso, sem receio de tropeçar. Até que às tantas, da soleira da porta, ouço: “Vá de carro, contorne à direita e suba a encosta até à adega.” Pareceu-me uma ordem e ali mesmo digo adeus a Maria José e guio o carro pela encosta a cima, periclitante, como quem experimenta um chão de minas. Lá no cimo, em redor de árvores amplas, um corredor de mesas e cadeiras, acolhe dezenas de pessoas estendidas a bebericar vinho e a comer pão com queijo ao que me pareceu de produção local. Fixo aquela massa de gente, seres desconchavados, baldados por ladainhas mal aprendidas que irrompem a serra como lâminas que ferem não só as árvores como aquela paz, aquela beatifica tarde tocada a sol claro e silêncio cristalino. Curioso, paro o carro e vou caminhar por ali por acolá, sem perceber que apelo sinto eu quando todo o meu interior se restringe, se encolhe, se distancia daquela alarve vivência que colhe do instante o nada que nada contém. Retorno a casa pelo caminho contrário, descendo para Setúbal com o Sado à direita e a urbe estendida à esquerda. Penso no que somos, grosso modo, uma massa de gente provinciana, sem finesses, bruta e quente, odorífera e mal cultivada, incapaz de reconhecer o mal do bem, praticando um e outro consoante a circunstâncias e as fúrias do momento, nunca assentes em padrões civilizacionais que caracterizam a linhagem de um povo sensível. A Igreja de Salazar e Caetano, formou-o virando os valores do avesso. Só daqui a quatro ou cinco gerações, seremos outra massa de gente mais equilibrada e humana. 

         - A mim quer-me parecer que o ditador ao vir agora com aquela que a “operação militar especial” entra numa fase de “libertação do Donbass” (entenda-se terminada), pretende limpar a imagem do seu falhanço da Ucrânia num todo. 

         - A guerra da Ucrânia veio, curiosamente, unir aquilo que Trump havia dividido, como juntou a Europa aos EUA e ainda deu força à UE. 

         - Joe Biden chamou “carniceiro” a Putin e com toda a propriedade. Pode não ser politicamente correcto, mas é a verdade tendo em conta a chacina por ele levada a cabo na Ucrânia.