quarta-feira, março 09, 2022

Quarta, 9.

Para sobreviver psicologicamente, voltei ao romance. Passei a manhã agarrado a ele como tábua de salvação e parece que tive a ajuda das personagens que me trataram com generosidade e alguma pena. Atulha-te, pois, nesse mundo; o outro onde habitas só faz sentido porque no fim te espera a redenção da morte e, portanto, a libertação total.

         - O barbeiro, um homem baixote, um pouco inchado do prazer da mesa, falando alto e com a autoridade de quem tem o mundo na sua cadeira, onde se senta o insigne militar como o tumefacto político, que com ele trocam ideias e mensagens secretas enquanto rodopia em seu redor, de tesoura e pente numa dança, dessas que traduzem os pequenos ódios e os grandes abalos partidários, dizia-me que Putin fizera um tratamento com botox e, indignado, respondia a si próprio: “Aquilo nem homem é! Já viu um homem preocupar-se com o aspecto ao ponto de fazer como as mulheres! Se o homem tem 70 anos, que quer ele mostrar?” De Jerónimo de Sousa: “Como é que um operário pode um dia tomar conta do país, ele que me parece não ser competente nem quando era operário.” Disse-lhe: “Ele pode não ter muitos estudos, mas fala melhor e num português correcto, que muitos doutores que estão na política.” O camarada da cadeira do lado, sorriu-me piscando-me o olho. 

         - Macron anunciou, enfim, que é candidato à sua própria cadeira. Com ele são ao todo 12, doze!, proponentes. Pobre França! Claro, atendendo à situação actual, é ele que ficará no poder. Os franceses já esqueceram o que foi o seu mandato, o abaixamento cívico e cultural, social e humano, cinco anos terríveis com a série de acontecimentos que abalaram o país: desde os coletes amarelos, às reformas, aos escândalos sexuais, ao incêndio de Notre-Dame, covid, desastres climáticos, guerras, tudo passou por ele e ele nem sempre esteve à altura dos acontecimentos. É certo que aprendeu muito, mas esse saber não descola da marca presunçosa e arrogante que tanto desgosta o povo da Gália. 

         - Valha-nos as mulheres de Zuckerberg que hoje passaram aí o dia. Devem ter saído cansadinhas, coitadinhas. Muito fala esta gente sem dizer absolutamente nada que jeito tenha. É certo que o trabalho é manual, entre elas e a cepa que ajeitam para que brilhe com os bagos dourados quando chegar o Verão; mas, que diabo, mesmo um analfabeto deve ter em si substância existencial que traduza a alegria da vida, a tristeza ou o compasso do tempo. Todos estes elementos do quotidiano podem ser expressados até com o mais rudimentar português.