sexta-feira, janeiro 16, 2015

Sexta, 16.
Antes de deixar Alhambra, um olhar aos jardins Generalife. Ficam, digamos, fora da medina e foram uma exploração agrícola e de repouso que integram um friso de casas sem muito interesse. Em verdade talvez uma horta onde se exprime o génio e o sonho islâmico. Todo o espaço parece ter sido concebido para seduzir, e permanece uma certa languidez sensual que nos toca. As longas muralhas de ciprestes, cheias de arabescos e sombras e raios solares, detêm-nos o passo, levam-nos a abancar por ali em meditações nem sempre alheias à delicadeza de um corpo, ao perfume que dele emana quando em estado de exaltação, ao murmúrio dos gemidos abafados nas noites cálidas de Verão, à cútis tisnada que endoidece os sentidos... Oh, não recordes! Não entres tão rápido por esse campo de alegrias e afagos. Detém-te na soleira dos sentimentos que são na sua organização sempre os mesmos, como os corpos, o mistério que os magnetiza quando neles se instalou a paixão. Talvez muito do que hoje julgamos ser o nosso desastre, o ruído brando da pele raspando um olhar, uma imprecisa sedução, um cheiro tocado pelo mistério que impregna de atractivo dois corpos, vem dessa magistral lição que gerações de sultões souberam tão bem traduzir. Toda a magnífica arte islâmica não é mais que um hino à luxúria sensual, traduzida num abandono morno e afável de dois corpos tocados pela graça do amor.   

         - Toda a Andaluzia estende-se preguiçosa por montanhas e vales profundos. O progresso ou o que quer que isso seja, modificou a paisagem que já pouco tem a ver com aquela que os meus olhos curiosos viram quando adolescente atravesseva a Espanha. Hoje já quase não se vêem aqueles touros possantes a vigiar as estradas, desafiadores de um povo heroico, que eram a marca de um país que os encarava nas arenas, mas os estimava como humanos. As grandes empresas agrícolas gradaram as encostas para nelas fazerem agricultura massiva, as faldas das serras foram transformadas em planícies, deixaram aquele aspecto quente, rude, cheias da luz que só a floração bravia irradia para evidenciarem num grito surdo a dolorosa adaptação que sofreram. Por todo o lado, máquinas diabólicas rasgam a terra depois de arrancarem olivais inteiros, aqui e além, misturadas no azul claro do céu, pequenos pueblos introduzem no horizonte uma nota humana de uma ternura humedecida pelo suor dos pobres no fio tangente de dor que não se manifesta para não privar de pão cada dia. Descendo a montanha de todos os mistérios, pousámos o olhar na neve alva que cobria os cumes da Serra Nevada. Eu fechei-me num rasgo interior de luz e beijei cada árvore como fez o pai de Saramago antes de morrer às oliveiras do seu quintal.

         - Deixámos para trás Sevilha porque a conhecemos ao toque dos dedos. Mérida que eu o ano passado atravessei em visita de médico, foi desta vez palmilhada em todas as direcções. O conjunto da cidade assenta na monstruosidade arquitectónica dos nossos dias, mas muito mais frágil que a outra que por todo o lado se esconde garbosa com dois mil anos de sólida coluna vertical. Refiro-me à presença romana. Sem ela Mérida não passaria de uma pequena cidade de pobres, de casario baixo, encolhida entre as margens do rio que a divide, com o seu carrossel de ruas que desaguam numa ou duas avenidas rasgadas para a dignificar. De passagem recordarei com estima o velho patrão do restaurante perto do Hotel Velada onde ficámos, que familiarmente nos servia uma refeição ligeira e pelo adiantado da noite parecia não acusar o peso da idade, sempre com um sorriso, uma conversa solta, uma gentileza.

         - Numa manhã gelada visitámos sem pressas o anfiteatro romano construído no tempo de Augusto e em muito bom estado. O imperador adorou aquele local e quis transformá-lo na capital da Lusitânia. Elegantes colunas formam o núcleo central, decoradas por acantos, com um espaço de representação vasto e largo, adornado de figuras em toga de uma mármore alvíssimo, impondo ao futuro a imponência da sua grandeza. Em volta sólidas muralhas em pedra que dois braços de homem não unem construídas para a eternidade. De um lado, avista-se a ponte romana do rio Guadiana da alcáçova árabe. Por todo o lado, arcos e passagens com elementos decorativos alusivos às festividades e lutas de gladiadores. O conjunto em bom estado de conservação, bem historiado, onde apetece ficar na contemplação de um mundo feito à imagem da potência impressionante que o moldou.

         - Numa tarde, por uma rua reservada aos piões, quando o sol estava plasmado nas edificações, descemos ao Templo de Diana. Augusta Emerita, era por essa altura a capital da província da Lusitana e o centro do foro municipal tinha sido criado ali na convergência de duas ou três ruas que vinham lá de cima do  anfiteatro romano. Um belo exemplar, frágil e sólido, talvez mais bonito e inteiro que o mesmo templo dedicado a Diana erigido em Évora. O património local deixou ficar pegado à elegante construção, uma outra de um fidalgo como foi regra a partir de certa altura fazerem os ricos, isto é, apropriarem-se das edificações romanas e transformarem-nas em residências. Os papas, diga-se de passagem, fizeram pior: desmontaram os palácios dos imperadores e deslocaram-nos para a sede papal onde ainda aí permanecem e formam o conjunto do Vaticano.

         - Ontem almocei com o Simão. Pena que ele tenha escolhido um restaurante dito típico, quero dizer, com a tagarelice insuportável que impede qualquer conversa séria e calma. Em surdina, pois, falámos de coisas graves que têm a ver com a natureza humana, a nossa e a que conhecemos ao largo das nossas vidas mais ou menos acomodadas no limite da dignidade. Simão comunga do que aqui disse terça-feira e daí partimos para a explanação do que amargura o mundo dos nossos dias, mal conduzido por homens saídos de eleições tocadas a rodos de dinheiro, que enganam os incautos e põem ao comando dos países gentalha miúda que sem o poder do dinheiro nunca se sentaria na cadeira do poder. Dali, subimos o Chiado para espreitar os livros na fnac. Pouca gente para tanta oferta. Publica-se demasiado, milhares de árvores são destruídas para se conhecer autores efémeros, que nada têm para nos comunicar, não fora a sua imensa presunção e a sua infinda e insuportável frivolidade. Chovia a rodos sobre a cidade.         


         - Antes fui tomar café à Brasileira para me encontrar com o grupo de artistas plásticos que vêm do fundo dos tempos. Sou sempre recebido com regozijo, talvez porque raramente tenho tempo para a cavaqueira à moda antiga. Por uma questão de decência, não vou contar de que se falou. Apenas direi que entre aquele grupo de sessentões desvairados, a liberdade está intacta e o faz-de-conta tão ao gosto de políticos e escritores de carreira, não colhe neles qualquer aceitação. Estão todos no activo, fazem o seu trabalho e expõem-no, vivem exclusivamente da pintura e, não obstante a delicada crise, continuam a vender o suficiente para o pão de cada dia. Pertencem a uma época gloriosa, vivem e pensam de acordo com princípios de coisa nenhuma, são ícones de uma geração comunitária que se exprimiu alto pelos cafés onde a tertúlia era sagrada como sagrados eram os conciliábulos do medo e da esperança na chegada da democracia. Hoje são os “vencidos dessa democracia”. Todos pertencem ao Partido Comunista, todos vivem mais ou menos à margem dos sacrossantos interesses partidários, embora com os pés gelados do lodo nacional. Estar com eles é renascer para um tempo onde tudo fazia sentido e onde pelos cantos da revolta se formavam as consciências e a camaradagem era um princípio dinâmico que não conhecia a bonança.