Sexta,
16.
Antes
de deixar Alhambra, um olhar aos jardins Generalife. Ficam, digamos, fora da
medina e foram uma exploração agrícola e de repouso que integram um friso de
casas sem muito interesse. Em verdade talvez uma horta onde se exprime o génio
e o sonho islâmico. Todo o espaço parece ter sido concebido para seduzir, e
permanece uma certa languidez sensual que nos toca. As longas muralhas de
ciprestes, cheias de arabescos e sombras e raios solares, detêm-nos o passo,
levam-nos a abancar por ali em meditações nem sempre alheias à delicadeza de um
corpo, ao perfume que dele emana quando em estado de exaltação, ao murmúrio dos
gemidos abafados nas noites cálidas de Verão, à cútis tisnada que endoidece os
sentidos... Oh, não recordes! Não entres tão rápido por esse campo de alegrias
e afagos. Detém-te na soleira dos sentimentos que são na sua organização sempre
os mesmos, como os corpos, o mistério que os magnetiza quando neles se instalou
a paixão. Talvez muito do que hoje julgamos ser o nosso desastre, o ruído brando
da pele raspando um olhar, uma imprecisa sedução, um cheiro tocado pelo
mistério que impregna de atractivo dois corpos, vem dessa magistral lição que
gerações de sultões souberam tão bem traduzir. Toda a magnífica arte islâmica
não é mais que um hino à luxúria sensual, traduzida num abandono morno e afável
de dois corpos tocados pela graça do amor.
- Toda a Andaluzia estende-se
preguiçosa por montanhas e vales profundos. O progresso ou o que quer que isso
seja, modificou a paisagem que já pouco tem a ver com aquela que os meus olhos
curiosos viram quando adolescente atravesseva a Espanha. Hoje já quase não se
vêem aqueles touros possantes a vigiar as estradas, desafiadores de um povo
heroico, que eram a marca de um país que os encarava nas arenas, mas os
estimava como humanos. As grandes empresas agrícolas gradaram as encostas para
nelas fazerem agricultura massiva, as faldas das serras foram transformadas em
planícies, deixaram aquele aspecto quente, rude, cheias da luz que só a
floração bravia irradia para evidenciarem num grito surdo a dolorosa adaptação
que sofreram. Por todo o lado, máquinas diabólicas rasgam a terra depois de
arrancarem olivais inteiros, aqui e além, misturadas no azul claro do céu,
pequenos pueblos introduzem no
horizonte uma nota humana de uma ternura humedecida pelo suor dos pobres no fio
tangente de dor que não se manifesta para não privar de pão cada dia. Descendo
a montanha de todos os mistérios, pousámos o olhar na neve alva que cobria os
cumes da Serra Nevada. Eu fechei-me num rasgo interior de luz e beijei cada
árvore como fez o pai de Saramago antes de morrer às oliveiras do seu quintal.
- Deixámos para trás Sevilha porque a
conhecemos ao toque dos dedos. Mérida que eu o ano passado atravessei em visita
de médico, foi desta vez palmilhada em todas as direcções. O conjunto da cidade
assenta na monstruosidade arquitectónica dos nossos dias, mas muito mais frágil
que a outra que por todo o lado se esconde garbosa com dois mil anos de sólida
coluna vertical. Refiro-me à presença romana. Sem ela Mérida não passaria de
uma pequena cidade de pobres, de casario baixo, encolhida entre as margens do
rio que a divide, com o seu carrossel de ruas que desaguam numa ou duas avenidas
rasgadas para a dignificar. De passagem recordarei com estima o velho patrão do
restaurante perto do Hotel Velada onde ficámos, que familiarmente nos servia
uma refeição ligeira e pelo adiantado da noite parecia não acusar o peso da
idade, sempre com um sorriso, uma conversa solta, uma gentileza.
- Numa manhã gelada visitámos sem
pressas o anfiteatro romano construído no tempo de Augusto e em muito bom
estado. O imperador adorou aquele local e quis transformá-lo na capital da
Lusitânia. Elegantes colunas formam o núcleo central, decoradas por acantos,
com um espaço de representação vasto e largo, adornado de figuras em toga de
uma mármore alvíssimo, impondo ao futuro a imponência da sua grandeza. Em volta
sólidas muralhas em pedra que dois braços de homem não unem construídas para a
eternidade. De um lado, avista-se a ponte romana do rio Guadiana da alcáçova
árabe. Por todo o lado, arcos e passagens com elementos decorativos alusivos às
festividades e lutas de gladiadores. O conjunto em bom estado de conservação,
bem historiado, onde apetece ficar na contemplação de um mundo feito à imagem
da potência impressionante que o moldou.
- Numa tarde, por uma rua reservada aos
piões, quando o sol estava plasmado nas edificações, descemos ao Templo de
Diana. Augusta Emerita, era por essa
altura a capital da província da Lusitana e o centro do foro municipal tinha
sido criado ali na convergência de duas ou três ruas que vinham lá de cima do anfiteatro romano. Um belo exemplar, frágil e
sólido, talvez mais bonito e inteiro que o mesmo templo dedicado a Diana
erigido em Évora. O património local deixou ficar pegado à elegante construção,
uma outra de um fidalgo como foi regra a partir de certa altura fazerem os ricos,
isto é, apropriarem-se das edificações romanas e transformarem-nas em
residências. Os papas, diga-se de passagem, fizeram pior: desmontaram os
palácios dos imperadores e deslocaram-nos para a sede papal onde ainda aí
permanecem e formam o conjunto do Vaticano.
- Ontem almocei com o Simão. Pena que
ele tenha escolhido um restaurante dito típico, quero dizer, com a tagarelice insuportável
que impede qualquer conversa séria e calma. Em surdina, pois, falámos de coisas
graves que têm a ver com a natureza humana, a nossa e a que conhecemos ao largo
das nossas vidas mais ou menos acomodadas no limite da dignidade. Simão comunga
do que aqui disse terça-feira e daí partimos para a explanação do que amargura
o mundo dos nossos dias, mal conduzido por homens saídos de eleições tocadas a
rodos de dinheiro, que enganam os incautos e põem ao comando dos países
gentalha miúda que sem o poder do dinheiro nunca se sentaria na cadeira do
poder. Dali, subimos o Chiado para espreitar os livros na fnac. Pouca gente para
tanta oferta. Publica-se demasiado, milhares de árvores são destruídas para se
conhecer autores efémeros, que nada têm para nos comunicar, não fora a sua imensa presunção e a sua infinda e insuportável frivolidade. Chovia a rodos
sobre a cidade.
- Antes fui tomar café à Brasileira
para me encontrar com o grupo de artistas plásticos que vêm do fundo dos
tempos. Sou sempre recebido com regozijo, talvez porque raramente tenho tempo
para a cavaqueira à moda antiga. Por uma questão de decência, não vou contar de
que se falou. Apenas direi que entre aquele grupo de sessentões desvairados, a
liberdade está intacta e o faz-de-conta tão ao gosto de políticos e escritores
de carreira, não colhe neles qualquer aceitação. Estão todos no activo, fazem o
seu trabalho e expõem-no, vivem exclusivamente da pintura e, não obstante a
delicada crise, continuam a vender o suficiente para o pão de cada dia. Pertencem
a uma época gloriosa, vivem e pensam de acordo com princípios de coisa nenhuma,
são ícones de uma geração comunitária que se exprimiu alto pelos cafés onde a
tertúlia era sagrada como sagrados eram os conciliábulos do medo e da esperança
na chegada da democracia. Hoje são os “vencidos dessa democracia”. Todos
pertencem ao Partido Comunista, todos vivem mais ou menos à margem dos
sacrossantos interesses partidários, embora com os pés gelados do lodo
nacional. Estar com eles é renascer para um tempo onde tudo fazia sentido e
onde pelos cantos da revolta se formavam as consciências e a camaradagem era um
princípio dinâmico que não conhecia a bonança.