Quarta,
14.
Não
vou procrastinar mais o relato dos nossos dias em Espanha e antes que alguma
coisa me escape, aqui registo o que de essencial retive. Sobretudo as quatro
horas às voltas na cidadela de Alhambra. Os dias frios embora pejados de sol, foram
um convite à vida desfraldada na surpresa e fascínio de cada recanto que
conheceu as suas origens por volta de séc. XIII ou até antes quando os judeus
chegaram a Granada, cidade ampla que se vê lá no fundo, espécie de concha
abrigada pela vasta colina de Sabika, bastião da Serra Nevada, quando o
fundador da dinastia Nasrida, Al-Ahmar, começou a erguer aquele enorme espaço
de cultura e história, mistério e sedução, que caiu em ruina e foi salvo pelo escritor
americano Washington Irving ao chamar a atenção do mundo em 1829 para a beleza
de um conjunto de palácios em ruína. Alhambra visita-se no vagar feliz das
horas, porque tudo ali é maravilha, mas maravilha única perpassada do mistério
que o tempo não esbateu. O Islão está lá adormecido em todo o seu esplendor:
místico, sensual, sonhador, artístico. Xerazade encontramo-la em cada sala, nos
recantos dos pátios, nos jardins com sua epiderme luxuriante de um verde claro
que o céu límpido torna mais intenso. Somos por força daquela luxuriante
paisagem arquitectónica seduzidos, obrigados a estarrecermo-nos ante o
magnetismo que se desprende do conjunto e por força do encantamento projectados
dos miradouros para espaços em declive de uma força visual tentadora. Se a
arquitetura muçulmana é ali omnipresente, a paisagística não lhe fica a trás.
Odores, plantas de cores quentes, maciços de ciprestes, Glicínias, alfazema,
alecrim, tudo trabalhado com arte, por onde o sol joga às escondidas com as
sombras, um ténue marulhar das fontes que pululam por todo o lado, dão-nos a
impressão de vivermos algures numa página das Mil e Uma Noites.
- Dentro
da fortaleza, não deixámos de admirar o famoso Palácio dos Leões e a sua fonte com
doze leões que se pensa representarem as doze tribos de Israel, apesar de ser
toda trabalhada em mármore, não deixa de ser elegante com as suas colunatas
graciosas e o borbulhar constate da água. A sala dos Abencerragens que foi alcova
do sultão, de uma magnificência que paralisa, com seus tectos moçárabes que
lembram ninhos de pássaros, sem janelas, minucioso e paciente trabalho de
artesãos devotados, com o friso de azulejos e a cúpula que encima uma pequena
fonte por onde a luz entra em doses sensuais... O Palácio de Comares outra jóia
da arte islâmica, mandado edificar pelo sultão Mohamed V, em 1370, para
assinalar a conquista de Algeciras, trava-nos a respiração. Ao centro, o pátio
dos Arrayanes com seu espelho de água e em redor divisões espaçosas onde
pernoitavam os convidados ilustres. Para não falar da sala de jantar, finamente
decorada e espaçosa, de belos estuques, com predominância dos azuis turquesa,
exuberantes de desenho e enquadramento.
- Ao
centro daquela autêntica fortaleza, onde a arte e o bom-gosto serpenteiam livres
e sorridentes, levanta-se o Palácio de Carlos V. Não há fadiga neste labirinto
secreto que nos suspenda. Somos arrastados de sala em sala, tomados não só pela
admiração, como também por uma espécie de glória íntima disseminada no mais
profundo de nós. Embora tivesse achado a estrutura do edifício demasiado pesada
relativamente ao conjunto, nem por isso deixei de me deslumbrar com o interior:
colunas dóricas, jónicas de fino trabalho lembrando a arte grega, cruzado com alguma
semelhança italiana e a fachada renascentista.
Pareceu-me todavia que muitos estilos se misturaram e o todo é sólido e
impositivo.
- À
noite demos um passeio pela zona envolvente. O nosso hotel ficava mesmo à
entrada da medina e não vos digo do mistério que o lugar possui. Não se via
vivalma e quando deixámos o carro no parque em frente, subimos por uma rampa
arborizada, debaixo das sombras que nos seguiam. A zona iluminada com sabedoria
e arte, deixava ver discretas presenças humanas nas janelas baixas iluminadas nos
dois ou três edifícios. Ao largo, mistério. Um profundo e perturbante silêncio.
Um frio glacial descia do céu. A noite banhava progressivamente tudo de branco.
Ao longe corria ainda um fio de água. Mais para longe a montanha mergulhada no
escuro da cor das almas penadas...