quarta-feira, janeiro 14, 2015


Quarta, 14.
Não vou procrastinar mais o relato dos nossos dias em Espanha e antes que alguma coisa me escape, aqui registo o que de essencial retive. Sobretudo as quatro horas às voltas na cidadela de Alhambra. Os dias frios embora pejados de sol, foram um convite à vida desfraldada na surpresa e fascínio de cada recanto que conheceu as suas origens por volta de séc. XIII ou até antes quando os judeus chegaram a Granada, cidade ampla que se vê lá no fundo, espécie de concha abrigada pela vasta colina de Sabika, bastião da Serra Nevada, quando o fundador da dinastia Nasrida, Al-Ahmar, começou a erguer aquele enorme espaço de cultura e história, mistério e sedução, que caiu em ruina e foi salvo pelo escritor americano Washington Irving ao chamar a atenção do mundo em 1829 para a beleza de um conjunto de palácios em ruína. Alhambra visita-se no vagar feliz das horas, porque tudo ali é maravilha, mas maravilha única perpassada do mistério que o tempo não esbateu. O Islão está lá adormecido em todo o seu esplendor: místico, sensual, sonhador, artístico. Xerazade encontramo-la em cada sala, nos recantos dos pátios, nos jardins com sua epiderme luxuriante de um verde claro que o céu límpido torna mais intenso. Somos por força daquela luxuriante paisagem arquitectónica seduzidos, obrigados a estarrecermo-nos ante o magnetismo que se desprende do conjunto e por força do encantamento projectados dos miradouros para espaços em declive de uma força visual tentadora. Se a arquitetura muçulmana é ali omnipresente, a paisagística não lhe fica a trás. Odores, plantas de cores quentes, maciços de ciprestes, Glicínias, alfazema, alecrim, tudo trabalhado com arte, por onde o sol joga às escondidas com as sombras, um ténue marulhar das fontes que pululam por todo o lado, dão-nos a impressão de vivermos algures numa página das Mil e Uma Noites.

          - Dentro da fortaleza, não deixámos de admirar o famoso Palácio dos Leões e a sua fonte com doze leões que se pensa representarem as doze tribos de Israel, apesar de ser toda trabalhada em mármore, não deixa de ser elegante com as suas colunatas graciosas e o borbulhar constate da água. A sala dos Abencerragens que foi alcova do sultão, de uma magnificência que paralisa, com seus tectos moçárabes que lembram ninhos de pássaros, sem janelas, minucioso e paciente trabalho de artesãos devotados, com o friso de azulejos e a cúpula que encima uma pequena fonte por onde a luz entra em doses sensuais... O Palácio de Comares outra jóia da arte islâmica, mandado edificar pelo sultão Mohamed V, em 1370, para assinalar a conquista de Algeciras, trava-nos a respiração. Ao centro, o pátio dos Arrayanes com seu espelho de água e em redor divisões espaçosas onde pernoitavam os convidados ilustres. Para não falar da sala de jantar, finamente decorada e espaçosa, de belos estuques, com predominância dos azuis turquesa, exuberantes de desenho e enquadramento.

        - Ao centro daquela autêntica fortaleza, onde a arte e o bom-gosto serpenteiam livres e sorridentes, levanta-se o Palácio de Carlos V. Não há fadiga neste labirinto secreto que nos suspenda. Somos arrastados de sala em sala, tomados não só pela admiração, como também por uma espécie de glória íntima disseminada no mais profundo de nós. Embora tivesse achado a estrutura do edifício demasiado pesada relativamente ao conjunto, nem por isso deixei de me deslumbrar com o interior: colunas dóricas, jónicas de fino trabalho lembrando a arte grega, cruzado com alguma semelhança italiana e a fachada renascentista.  Pareceu-me todavia que muitos estilos se misturaram e o todo é sólido e impositivo.


         - À noite demos um passeio pela zona envolvente. O nosso hotel ficava mesmo à entrada da medina e não vos digo do mistério que o lugar possui. Não se via vivalma e quando deixámos o carro no parque em frente, subimos por uma rampa arborizada, debaixo das sombras que nos seguiam. A zona iluminada com sabedoria e arte, deixava ver discretas presenças humanas nas janelas baixas iluminadas nos dois ou três edifícios. Ao largo, mistério. Um profundo e perturbante silêncio. Um frio glacial descia do céu. A noite banhava progressivamente tudo de branco. Ao longe corria ainda um fio de água. Mais para longe a montanha mergulhada no escuro da cor das almas penadas...